quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A forma da água - Reflexões sobre um filme de Guilhermo Del Toro








Recentemente fui ver o novo filme do Guilhermo Del Toro chamado "A forma da água" e achei o filme bem interessante. Basicamente o filme conta a história de Elisa que é uma zeladora muda que trabalha em um laboratório onde uma criatura está sendo mantida em cativeiro. Quando Elisa se apaixona com a criatura, ela elabora um plano para ajudá-lo a escapar com a ajuda de seu vizinho. Nesse objetivo ela é auxiliada por sua amiga de trabalho e também por um cientista russo disfarçado que tem planos de manter a criatura viva no intuito de conhecer melhor a criatura. A história então se passa nessa tentativa de fuga e no seu desfecho ao final do filme. Algo que me chamou muito a atenção no filme foi a dinâmica desenvolvida entre a personagem principal do filme (Elisa) e o monstro (sem nome) que está preso e ao mesmo tempo está sendo estudado pelos cientistas na instalação onde ela trabalha. O filme se passa no período da guerra Fria e daí percebemos muito claramente a oposição entre Rússia e EUA.

A identificação imediata de Elisa com o monstro é muito interessante e de alguma forma é isso que leva Elisa a empreender a sua luta por salvá-lo. O fato de Elisa ser muda é de extrema importância para a trama do filme, afinal ela mantém uma comunicação muito rudimentar com as pessoas ao seu redor, da mesma forma que o monstro não consegue se comunicar muito bem com as pessoas ao seu redor. Essa ausência da comunicação de alguma forma os aproxima e faz com que Elisa veja no monstro algo de si mesmo. Neste sentido é diante desse "gap" entre Elisa e o monstro que acontece o encontro entre os dois. 

O filme traz consigo um forte apelo político do ponto de vista da "aceitação do diferente" promovido principalmente pelo cientista russo disfarçado que vê o monstro como objeto de estudo para o avanço da ciência, o que sem dúvida nos remete a toda a ideologia liberal da atualidade de tentar encontrar no outro algo com o qual eu fosse capaz de me identificar como forma de respeitar a liberdade do outro. Essa espécie de "Fator X"(para usar a expressão de Fukuyama) que se encontraria na "essência" de todo ser vivo e que por isso deve ser respeitado parece ser o pressuposto da personagem principal para se compadecer do outro que sofre. Ou seja, mesmo sendo uma criatura que não é humana, ainda assim ele teria algo com o qual nós humanos, e a personagem principal em particular, poderia se identificar, de forma que toda forma de maus tratos ou humilhação deveria ser evitada. A grande questão que penso emergir a partir do filme é: Será que é possível se importar com o outro mesmo sem essa identificação primordial? Ou o pressuposto básico de toda forma de justiça ou amor está ancorado nessa mínima identificação com o outro?  Esse tipo de noção não se ancoraria em um pressuposto pré-moderno de uma essência humana que há muito, do ponto de vista prático, não teria sido abandonado por nós? A forma da água não remeteria em última instância a tentativa de abordar o encontro com o estranho dentro de uma sociedade líquida, esse estranho que pode ser o estrangeiro, o refugiado, o pobre, o gay, etc.?

A resposta que fica latente no filme é que a identificação do outro como semelhante é condição de possibilidade para o compadecimento e é por isso que Elisa é a capaz de fazer algo por esse outro, e ao mesmo tempo é exatamente nesta ausência de identificação que permite que o comandante dos EUA continue torturando a criatura, afinal ela não é digna de respeito pelo fato de não haver nada nela com o que eu me identifique. No entanto, não será possível que o compadecimento tenha sua fonte no total vazio que eu trago em mim e de alguma forma quer ser "completado" pelo vazio do outro? O sujeito hipermoderno totalmente destituído de todo traço de essência não teria no outro apenas um fantasma com o qual tenta se aproximar na tentativa de se entender minimamente? Se for esse o caso, não seria o amor uma forma última de possibilidade para o contato com o outro que fosse capaz sem nenhum tipo de identificação? A questão levanta um curioso paradoxo hipermoderno. Ao mesmo tempo em que se procura evitar todo tipo de tradição, evitar todo tipo de universalização de qualquer coisa que seja, de forma que haja um completo relativismo sobre basicamente tudo, o sujeito hipermoderno ainda precisa apelar para algum tipo de "essência" para justificar suas pautas como a defesa das minorias, a luta pela justiça para todos, etc. 

A forma da água aparece em um momento interessante no qual questões referentes à tolerância se mostram cada vez mais emergentes. Há muito já sabemos que tolerar não significa "tolerar tudo", mas que deve haver sempre um limite para a tolerância; e geralmente colocamos esse "limite" em uma noção parca de "humanidade", ou "vida", etc. A ideia é que se pode fazer tudo, exceto aquilo que fere a dignidade do outro ser vivo. Neste sentido a atitude do comandante que tortura a outra criatura gera no espectador uma espécie de repulsa e não raras vezes atribuímos apenas à ignorância esse tipo de atitude. Mas e se nesse tipo de atitude estivesse representada exatamente a forma como nós, os hipermodernos totalmente esclarecidos, lidamos com o diferente de forma extremamente perversa em suas mais diversas facetas? Por trás do discurso liberal da aceitação de todos os modos de vida não se esconderia um forte suporte narcísico desse sujeito desbussolado da contemporaneidade?

Um ponto curioso que surge no decorrer do filme é o fato do monstro parecer possuir capacidades sobrenaturais como fazer crescer cabelo no vizinho de Elisa, e curar Elisa de sua ferida, além do fato de que é dito no filme que o monstro era considerado um Deus entre os povos da América do Sul. Neste sentido não estaria envolvido aqui uma trama teológica entre o sujeito e Deus na contemporaneidade, na qual o contato com o divino tem em vista sempre um contato direto, sem mediação institucional, apenas a partir de uma experiência particular? Movimentos como a nova Era e as novas formas de espiritualidade (tipicamente orientais) evidenciam exatamente este ponto, ou seja, o objetivo do sujeito é uma espécie de "imersão" na divindade, um abandonar-se e se unir com Deus em uma espécie de nirvana cósmico. Neste sentido podemos falar até mesmo de um contar de uma história da religião no filme de Del Toro. Desde a relação homem-Deus como Deus sendo o objeto estranho, digno de medo, passando pela relação tipicamente cristã de Deus como alguém passível de contato, alguém com quem posso me identificar minimamente e manter uma relação de troca com Ele, até a imersão espiritualista da contemporaneidade na qual esse Deus acaba sendo visto como algo no qual posso imergir e me perder nesse contato. 

Quando Elisa se identifica com o monstro e leva até às últimas consequências tal identificação não estaria ali o desejo pelo desejo do outro em sua forma mais crua? Elisa deseja que haja alguém que a compreenda de maneira muito mais íntima pela qual é compreendida pelo seu vizinho. O encontro entre ela e o monstro evidencia para Elisa a possibilidade desse encontro com o Real do outro, permite a ela experienciar de forma única aquele algo que se encontra escondido no outro, mas que se revela na ausência de palavras capaz de simbolizar tal relação. O que permite que Elisa entre em contato íntimo com o monstro é exatamente a água. O monstro precisa viver dentro da água senão ele morre e Elisa se propõe a encher o seu apartamento de água para que o encontro possa ocorrer. A água, aquela substância totalmente informe, ganha forma no gesto do encontro de Elisa com o monstro. A forma da água, nesse sentido, é a história de um encontro improvável, a história de um amor que transcende a questão física e se concentra em uma entrega que não raras vezes vale a própria vida daquele que ama.

A meu ver, o filme de Del Toro toca em questões bastante pertinentes da nossa época. A questão da tolerância, a questão do outro como diferente de mim, a possibilidade do amor entre o diferente, etc. e traz isso tudo de forma extremamente poética, de forma extremamente leve. A cena inicial do filme em que tudo "flutua" em um quarto inundado enquanto Elisa dorme remete exatamente a essa "morte" que todo ato de amor traz consigo, uma morte que traz vida e que permite que o outro renasça resignificado por mim; e nessa resignificação do outro eu mesmo me resignifico, pois me vejo como alguém que também pode ser amado pelo outro. 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Zizek, Veliq, Stories...






"Isso nos leva ao que somos tentados a chamar de antinomia da individualidade pós-moderna: a injunção para "ser você mesmo", desconsiderar a pressão do entorno e alcançar a autorrealização, afirmando plenamente seu potencial criativo singular, acaba esbarrando cedo o u tarde no paradoxo de levar quem o obedece a sentir-se completamente isolado daquilo que o circunda, sem absolutamente nada, lançado num vazio da mais pura e simples estupidez. O avesso inerente do "seja seu verdadeiro Eu" é, portanto, a injunção a cultivar uma remodelação permanente em conformidade com o postulado pós-moderno da plasticidade infinita do sujeito... Em síntese, a extrema individualização se transforma em seu oposto, levando à derradeira crise de identidade: os sujeitos experimentam a si mesmos como radicalmente incertos, sem nenhuma "expressão própria", trocando uma máscara (imposta) por outra, uma vez que, em última instância o que está por trás da máscara é nada, um tenebroso vazio que eles tentam freneticamente preencher com sua atividade compulsiva, ou se deslocando entre hobbies e maneiras de se vestir cada vez mais idiossincráticos, a fim de acentuar sua identidade individual. Podemos ver aqui como a individualização extrema (o esforço para ser fiel ao seu Eu, fora dos papéis sociossimbólicos impostos) tende a coincidir com seu oposto, com a estranha e angustiante sensação de perda de identidade - isso não é a confirmação definitiva do insight de Lacan de que só podemos alcançar um mínimo de identidade e "ser nós mesmos aceitando a alienação fundamental na rede simbólica?" (ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo. 2016 p. 393,394)

Aqui reside a meu ver algo que sempre comento a respeito das novas formas de afirmação do sujeito contemporâneo, essa tentativa frenética de se autoafirmar constantemente acaba por demonstrar uma completa fissura neste sujeito. Ele oscila constantemente entre a autoafirmação de si e a autoafirmação simbólica, ora se apegando a um, ora se apegando a outro. Neste sentido, o drama do sujeito contemporâneo se encontra em sair desse círculo vicioso. Não é de fato curioso o fato de que as redes sociais seja o lugar onde esse círculo vicioso se mostra de forma muito nítida? Ali parece haver uma espécie de "suspensão simbólica" (afinal, as relações nas redes sociais são em grande medida imaginárias), mas ao mesmo tempo uma espécie de aposta no "real de si" (a ideia de que posso livremente expressar quem sou por meio dos meus posts). Nesta estranha economia a que o sujeito contemporâneo está submetido o que está em jogo é, dentre outras coisas, o tipo de persona que será construído pelo sujeito como forma de interação (em grande medida imaginária) com o outro.

Na dinâmica das redes sociais onde tudo é extremamente fluido o fenômeno do "stories" do Instagram ou "snapchat" ganha um contorno ainda mais interessante. A meu ver nada diz mais da nossa sociedade extremamente fluida do que o número de "stories" que são contadas todos os dias nos aplicativos. A ideia de que nem mesmo as minhas ações precisam perdurar, a ideia de que há sempre alguém interessado nos mínimos detalhes da minha vida, a ideia de que posso postar os detalhes mais ínfimos da minha vida e ao mesmo tempo encontrar espectadores para tal, mas com a garantia de que aquilo não ficará mais que 24 horas disponível coloca o sujeito em uma possibilidade de "exposição controlada", ou seja, ele se sente à vontade para compartilhar a sua vida, ("verdadeira", diária, etc.) pois tem plena consciência de que aquele "momento compartilhado" em breve não estará mais ali, mas ao mesmo tempo ele tem plena consciência de que "enquanto o momento está ali" há uma chance de uma parca interação com o outro que o responderá, verá a "stories", etc. Não precisamos dizer que o que é exposto possui um caráter extremamente imaginário, visando passar uma imagem para o outro que várias vezes não corresponde em nada à realidade vivida. Ninguém obviamente publica os remédios que toma, as desavenças que tem, os dramas familiares, etc. O "acordo silencioso" (para usar a expressão de Wittgenstein) é a de que só se deve postar coisas que excitará o desejo do outro, coisas que farão o outro desejar aquilo que possuo, ou no máximo "dificuldades corriqueiras" para tentar passar a ideia de que para além da idealização pretendida ainda se é um ser humano normal, com problemas, etc.

Dessa forma fica nítida que na realidade há apenas uma relação muito espectral do sujeito consigo mesmo e aqui há uma boa pista do porquê que hoje qualquer tentativa de um contato um pouco mais íntimo com o outro se mostra na maior parte das vezes "invasivo" para o sujeito contemporâneo.
Tão acostumado a se relacionar apenas consigo mesmo, tudo que vem do outro aparece como ameaça, como intrusão, como falta de respeito à minha esfera mais íntima. Não é extremamente curioso que hoje muitas pessoas achem o fato de receber um telefonema como algo extremamente invasivo? Ou que qualquer pergunta sobre o trabalho, sobre o relacionamento, etc. soe extremamente perturbadora?
Essa perda da dimensão do outro, ou da dimensão sociossimbólica que nos permeia não nos ajuda a pensar as demandas contemporâneas como a questão gay, ecológica, feminista, dentre várias outras? Não há aqui uma boa pista para encararmos a questão da identidade contemporânea permeada pelas redes sociais e ao mesmo tempo a demanda excessiva para o cuidado de si (alimentar de forma saudável, praticar exercício, ter uma vida espiritual, etc.)?