quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

" Se alguém quiser [...] renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me" Mateus 16:24







Uma das questões talvez mais interessantes em relação às diversas músicas cristãs que pregam uma espécie de abnegação do sujeito em relação a si seja o fato de que tais canções partem de pressupostos antropológicos extremamente estranhos do ponto de vista bíblico. 
A ideia de que o ser humano seria um sujeito marcado pelo pecado e que a conversão deveria ser o momento em que ele se assume como "nova criatura", deixando para trás o status de "pecador" e se tornando agora um "santo, raça eleita, etc." é algo extremamente difundido no meio cristão e ao mesmo tempo parte da noção de que, para se viver com Cristo seria preciso que o sujeito de alguma forma "eliminasse sua subjetividade", seu "eu pecaminoso", ou seja, "morresse para o pecado, para ressurgir com Cristo".

Primeiramente precisamos pensar que a proposta cristã trazida por Paulo, longe de propor a aniquilação da subjetividade do sujeito, propõe ao invés disso o assumir pleno de tal subjetividade. O cristão deve, para seguir a Cristo, se colocar como um sujeito capaz de escolher essa vida que lhe é oferecida, e o faz no gozo de suas plenas faculdades mentais. A decisão de viver essa nova vida não é algo que lhe é imputado de fora, mas deve partir de uma adesão íntima do sujeito que se sente movido a agir de tal forma. Interessante notar que no início do cristianismo um fator determinante para a conversão dos gentios eram os milagres feitos pelos apóstolos, depois, à medida que o cristianismo vai se espalhando, os milagres passam a ser menos importantes e o discurso/prática cristã ganha a proeminência que levará os gentios à conversão. Para um exemplo simples basta pegarmos o livro de Atos e perceber a diferença das primeiras conversões com o discurso de Pedro e as conversões advindas das cartas paulinas. Do elemento externo (milagres) ao elemento interno (convicção do sujeito) as conversões bíblicas no primeiro século dão a tônica do tipo de religião que o cristianismo será, ou seja, uma religião de foro íntimo, em o que está em jogo, em última instância não é nada além da intenção do sujeito. Neste sentido aqui é possível uma dura crítica à noção agostiniana de pecado original, coisa que o protestantismo se encarregou de fazer muito bem posteriormente. 

Essa mesma temática aparece em diversas parábolas de Jesus, que como sabemos, foram escritas em época posteriores à teologia paulina. Se pensarmos nas frases enigmáticas de Jesus, "Aquele que quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mt 16,25) parece sugerir que de fato, o cristão, para ser seguidor de Cristo, deve de fato negar a si mesmo em uma espécie de supressão identitária para que só assim "Cristo possa de fato viver nele". No entanto, gostaria de chamar a atenção para o fato de que o contexto judaico no qual tais textos foram escritos mantém uma vinculação muito estreita entre o sujeito e sua comunidade. O sujeito é dentro da sua comunidade, ele se torna o que é, mediado pela sua comunidade. Neste sentido, negar a si mesmo tem muito mais a ver com negar a sua pertença à uma comunidade específica do que propriamente negar o núcleo da sua subjetividade. 

Neste sentido podemos entender as falas de Jesus quando propõe que os seus seguidores "deixem pai e mãe", "irmãos", etc. ou seja, o que Jesus traz consigo é uma proposta de supressão dos laços familiares em prol do Reino de Deus. Nem os laços familiares estão acima da proposta do Reino, nem a pertença à uma comunidade estão acima da proposta do Reino, neste sentido é que se pode entender que aquele que não é capaz desse tipo de renúncia não é digno de Jesus. Os laços familiares, comunitários não podem sobrepor ao Reino de Deus, Reino onde não há judeu, nem grego, nem gentio, etc. mas todos pertencem à uma comunidade universal. Para romper com esse tipo de vínculo é preciso que o sujeito se constitua independente destas estruturas, ou seja, negar a si mesmo pressupõe antes disso um assumir-se a si mesmo como sujeito disposto a aceitar a proposta do Reino. Em termos psicanalíticos, pressupõe que o sujeito assuma o seu desejo e a partir dele seja capaz de fazer sua escolha.  Basta repararmos que o próximo passo que Jesus propõe é uma escolha, ou seja, "tomar a sua cruz" é um ato de escolha do sujeito que, para tal, precisa ser antes de tudo um sujeito capaz de escolha. Se o "negar a si mesmo" fosse um abrir mão da sua subjetividade seria impossível que ele fizesse a escolha posterior de "tomar a sua cruz".

Um outro ponto que gostaria de ressaltar é o "tome a sua cruz". O "tomar a sua cruz", desde o início do cristianismo sempre foi visto como uma espécie de sacrifício que o cristão deveria fazer para que depois de sua jornada terrestre ele fosse capaz de receber a sua recompensa no mundo porvir. Diversos autores cristãos enfatizaram esse ponto e tais leituras remetem à teologia paulina em última instância. No entanto, a teologia posterior, (e talvez o nome principal aqui seja a figura de Kant) se encarregou de evidenciar o estranho mecanismo envolvido nesse tipo de "negociação". Afinal, é bastante óbvio que, se tomo a minha cruz no intuito de receber uma coroa no porvir, o que está em jogo é um mero jogo de barganha velada, ou seja, eu assumo os sofrimentos propostos pelo cristianismo, pois no final irei receber uma vida eterna, etc. Kant evidencia que esse procedimento é extremamente vinculado à lógica da retribuição, mas para além disso, tal procedimento evidencia que a própria estrutura de mundo que a proposta do Cristo visa romper não é rompida pelo cristianismo posterior. 

Mas qual é a estrutura do mundo que a proposta do Cristo visa romper? Ela nada mais é que a lógica da retribuição. Jesus, ao propor que "se dê a outra face", não está propondo aqui um mero masoquismo estúpido, mas sim evidenciando que a justiça não se dá por meio de um reequilíbrio entre as partes, mas se dá pela subversão do amor. No amor o que há é uma escolha vazia, ou seja, uma escolha que elege um objeto como coisa primordial mesmo que aquele objeto não tenha nada para lhe oferecer em troca. A justiça que se vincula ao amor neste sentido não parte da noção de retribuição, mas da noção de "doação". Daí que o "tomar a sua cruz" não deve ser visto como um "sacrifício", mas sim como "doação", evidenciando aquilo que Paulo nos advertia: "Haja em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo". (Fp 2,8) A cruz que o sujeito deve tomar é a sua responsabilidade diante do seu desejo. Apenas quando o sujeito é capaz de assumir o seu desejo ele pode dar o passo fundamental que envolve seguir a Cristo sem que seja necessário nenhuma recompensa. Interessante que a proposta de Jesus aos discípulos começa com uma grande condicional "Se alguém quiser vir após mim", ou seja, a proposta de Jesus nunca é de uma obrigação do sujeito, não é de um viés belicoso, mas é sempre um convite gentil que cabe ou não ao sujeito aceitar. 

Neste sentido podemos entender que o "negar a si mesmo" não se vincula à negar a sua vontade, não é nunca uma recusa ao desejo do sujeito, mas muito pelo contrário, é assumir de forma responsável o seu desejo que se vincula à doação por amor a Deus. Só aquele que é capaz de negar a si mesmo é capaz do ato de doação que se vincula à prática do amor. Apenas nesse sentido é que se é capaz de fazer a próxima proposta de Jesus que é "segui-lo".  Esse "seguir" não visa algo em troca, não visa uma "coroa no porvir", mas visa apenas se manter fiel ao seu desejo de doação em prol de alguém em quem se tem fé e é esse tipo de escolha que pressupõe um sujeito responsável, que não nega a sua subjetividade, mas a assume como única forma possível de amar. 




quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O absurdo e o suicídio - Albert Camus




"Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo. Estão aí as evidências que são sensíveis para o coração, mas é preciso aprofundar para torná-las claras à inteligência.

Se me pergunto em que julgar se uma questão é mais urgente do que outra, respondo que é com ações a que ela induz. Eu nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que detinha uma verdade científica importante, abjurou-a com a maior facilidade desse mundo quando ela lhe pôs a vida em perigo. Em um certo sentido, ele fez bem. Essa verdade não valia a fogueira. Se é a Terra ou o Sol que gira em torno um do outro é algo profundamente irrelevante. Resumindo as coisas, é um problema fútil. Em compensação, vejo que muitas pessoas morrem por achar que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outras que paradoxalmente se fazem matar pelas idéias ou as ilusões que lhes proporcionam uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é, ao mesmo tempo, uma excelente razão para morrer). Julgo, portanto, que o sentido da vida é a questão mais decisiva de todas. E como responder a isso? A respeito de todos os problemas essenciais, o que entendo como sendo os que levam ao risco de fazer morrer ou os que multiplicam por dez toda a paixão de viver, provavelmente só há dois métodos para o pensamento: o de La Palisse e o de Don Quixote. É o equilíbrio da evidência e do lirismo o único que pode nos permitir aquiescer ao mesmo tempo à emoção e à clareza. Em um assunto simultaneamente tão modesto e tão carregado de patético a dialética clássica e mais sábia deve, pois dar lugar - convenhamos - a uma atitude intelectual mais humilde e que opera tanto o bom senso como a simpatia.

O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso, aqui se trata, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma tarde ele dá um tiro ou um mergulho. De um administrador de imóveis que tinha se matado, me disseram um dia que ele perdera a filha há cinco anos, que ele mudara muito com isso e que essa história “o havia minado”. Não se pode desejar palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser minado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se acha no coração do homem. É ali que é preciso procurá-lo. É preciso seguir e compreender esse jogo mortal que arrasta a lucidez em face da existência à evasão para fora da luz.

Há muitas causas para um suicídio e, de um modo geral, as mais aparentes não têm sido as mais eficazes. Raramente alguém se suicida por reflexão (embora a hipótese não se exclua). O que desencadeia a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam freqüentemente de “profundos desgostos” ou de “doença incurável”. Essas explicações são válidas. Mas seria preciso saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente. Este é o culpado. Pois isso pode ser o suficiente para precipitar todos  os rancores e todos os aborrecimentos ainda em suspensão.i

Mas, se é difícil fixar o instante preciso, o procedimento sutil em que o espírito se decidiu pela morte, é mais fácil extrair do próprio gesto as conseqüências que pressupõe. Matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la. Mas não nos deixemos levar tanto por essas analogias e voltemos à linguagem corrente. É somente confessar que isso “não vale a pena”. Naturalmente, nunca é fácil viver. Continua-se a fazer gestos que a existência determina por uma série de razões entre as quais a primeira é o hábito. Morrer voluntariamente pressupõe que se reconheceu, ainda que instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento.

Qual é, portanto, esse sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário à vida? Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade. Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, se poderá reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada.

O assunto deste ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se tomar por princípio que, para um homem que não trapaceia, o que ele acredita verdadeiro deve lhe pautar a ação. A crença na absurdidade da existência deve, pois, lhe dirigir o comportamento. É uma curiosidade legítima se indagar claramente, e sem falso pateticismo, se uma conclusão de tal ordem exige que se abandone o mais que depressa uma condição incompreensível. Refiro-me aqui, é claro, a homens dispostos a estarem de acordo consigo mesmos."

(CAMUS, Albert. "O absurdo e o suicídio" em "O mito de Sísifo - Ensaios sobre o absurdo". Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. pp. 15-17. Disponível em https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789723829358.pdf acessado em 17/01/2018)



i Não deixemos passar a oportunidade de assinalar o caráter desse ensaio. O suicídio pode, de fato, estar ligado a considerações muito mais honrosas. Por exemplo: os suicídios políticos ditos de protesto na revolução chinesa. [A edição original de O Mito de Sísifo é de 1942: o autor, portanto, certamente ainda não tivera conhecimento do fenômeno Kamikase, que lhe despertaria a atenção para outros, análogos, na civilização japonesa. Sua nota, porém, antecipa a consideração do auto-sacrifício dos bonzos na antiga Saigon, hoje Ho Chi Minh, durante a guerra do Vietnã (N. do T.)]