sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O hábito da Filosofia: ou Sobre a arte de lidar com minhocas.




Foto da Glowworm caves na Nova Zelândia. As luzes são emitidas pelas minhocas que habitam a caverna.  
Disponível em https://paraondefor.com.br/glowworm-caves-caverna-das-minhocas-brilhantes/


Nós, os filósofos, temos uma certa "tara" por minhocas. Cultivamos diversos tipos delas nos mais diversos solos e nas mais diversas condições climáticas. Para mim, uma condição necessária para se ser um bom filósofo é meio que gostar de cultivar minhocas. 
No entanto, nossas minhocas são um pouco diferentes daquelas do pescador, daquelas das pessoas que aram a terra, adubam, etc. As nossas minhocas passam por questões que várias vezes nem sequer existem, mas passam a se colocar como problemas porque nós as elegemos como tais. 

Obviamente que todos nós, não somente os filósofos, cultivamos minhocas de vez em quando. Aquela sensação de algo vai dar errado, aquela sensação de que alguma coisa não está certa quando tudo está normal, aquela sensação de que somos feios, gordos, desinteressantes, que ninguém nos amará, que somos barrigudos, que somos uma farsa ambulante, que somos o pior dos seres humanos sobre a face da Terra, que não somos bons em nada, que nossa profissão não é o que gostaria de fazer, que minha vida não tem sentido, etc. tudo isso é o que aqui chamo de minhocas e que tenho certeza que qualquer leitor desse texto já cultivou alguma em algum período da vida. 

Claro que algumas dessas minhocas são mais frequentes em épocas pontuais da nossa vida. A questão da aparência é típica da adolescência e todos os traumas advindos dessa fase nebulosa; as questões referentes aos laços mais sólidos é típica da fase infantil, em que as relações basilares da vida do sujeito estão sendo construídas, etc. A questão do se sentir uma farsa tem muito a ver com a idade adulta e o discurso do capitalismo tardio em que nunca se está com conhecimento suficiente, nunca se é bom o bastante, etc. Não preciso dizer, entretanto, que isso não é "rígido"; ou seja, dependendo da vivência de cada pessoa, algo que seria comum acontecer durante a infância passa a acontecer na adolescência, na fase adulta, etc. Cada caso é um caso quando se trata de criação de minhocas. 

No caso específico de nós filósofos, as minhocas desempenham  um papel crucial para o exercício da nossa função, afinal, é com elas que trabalhamos. Não nos aventuramos a mexer com quase nada que não sejam minhocas. No entanto, nossas minhocas são várias vezes criadas e cultivadas por nós mesmos e debatidas e compartilhadas entre nós mesmos. Quem mais sofre quando se convive com um cultivador profissional de minhocas são os mais próximos. Afinal, são eles que tem que nos lembrar diversas vezes que nossas minhocas nem sequer existem na realidade, e que se caso fôssemos cultivar minhocas seria muito mais proveitoso cultivar minhocas reais do que minhocas imaginárias. Não é raro vermos os próximos de nós propor uma espécie de "giro wittgensteiniano" para nos dizer que na realidade o que estamos tratando são falsos problemas e trazer a questão para o plano da "realidade". Nem sempre esse giro resolve o problema, mas tem sido uma prática bastante utilizada por pessoas próximas a cultivadores de minhocas. 

No entanto, nem tudo são ônus para os que convivem com cultivadores de minhocas. Como cultivamos vários tipos de minhocas e como as cultivamos por muito tempo e em diferentes solos, somos experts em identificar as minhocas quando elas aparecem naqueles que nos são próximos. Neste sentido, os amigos dos cultivadores de minhocas se beneficiam bastante dos nossos saberes, pois as identificamos muito facilmente e somos capazes de arrancar as minhocas dos solos alheios com certa destreza. Eu na minha experiência de vida já transitei por diversas terras cheias de minhocas e fui capaz de arrancá-las de maneira bastante hábil. Ainda hoje retiro minhocas de terrenos quase que semanalmente e de diversas pessoas. 

Mas como diz aquele velho ditado (talvez o meu segundo ditado preferido, pois o primeiro é "enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé") "em casa de ferreiro, o espeto é de pau", ou seja, nós, tão hábeis em arrancar minhocas alheias, encontramos uma dificuldade assombrosa em arrancar as minhocas em nossa própria propriedade; pelo contrário, ao invés de arrancá-las, nós as cultivamos, alimentamos, as transformamos em verdadeiros monstros que quase nos dominam de forma assombrosa. O grande desafio para nós, os cultivadores de minhocas profissionais, é de fato não deixar que as minhocas dominem o nosso terreno, mas que nós as dominemos. Obviamente que nem sempre somos capazes de fazer isso sozinho, e é exatamente nessas horas que os amigos aparecem, pois eles são capazes de (talvez por já nos ter visto atuando em algum momento) retirar habilmente as minhocas de nossas terras. Os métodos variam de amigo para amigo. Alguns são mais incisivos e as retiram a machadadas no melhor estilo nietzscheano e sua filosofia do martelo, outros procuram um viés um pouco mais sutil, cercando o terreno, vislumbrando o deslocamento delas para depois as retirarem de forma bastante delicada; os estilos são tão variados quanto são os amigos que lidam com isso conosco. Nesse contexto também temos outros profissionais que lidam especificamente com minhocas alheias (embora acredite que eles também possuem certas dificuldades em lidar com suas próprias minhocas) que são os psicólogos, psicanalistas, professores, etc. 

Como já deve ter ficado claro, lidar com minhocas é algo que todos nós fazemos e podemos dar nomes clínicos para diversos dessas minhocas com as quais lidamos. Algumas são reais e demandam remédios, outras são imaginárias, outras são meio que reais, meio que imaginárias, mas em todo caso sabemos que nem toda minhoca é "em si" um problema, mas o problemático é a forma como resolvemos lidar com elas, o espaço que deixamos elas ocuparem em nosso terreno, o que as deixamos fazer em nossa terra. Saber cultivar e arrancar minhocas é uma tarefa árdua até para os profissionais, quem dirá para o leigo.  De toda forma, caso necessite de alguém que trabalhe com minhocas, lembre-se que nós, os filósofos, somos experts nesse tipo de problema e somos capazes de resolver uma boa parte dos problemas com minhocas em terras outras, mas temos muitas dificuldades para resolver em nossas próprias terras. Para resolver em nossas próprias terras sempre precisamos de amigos, psicólogos, psicanalistas, professores, etc. etc. etc. 

Caso você esteja enfrentando sérios problemas com minhocas procure ajuda. Um psicólogo, um psicanalista, um psiquiatra, um filósofo, cada um com seu método de tratamento. No caso do filósofo será muito mais um auxílio por meio de uma boa conversa do que propriamente um "tratamento". No caso de tratamento recomendo mais um psicólogo, um psicanalista, talvez um psiquiatra, tudo dependendo sempre do tipo de minhoca que anda transitando em suas terras. E claro, às vezes um amigo da Letras, um amigo da Música, um amigo das Artes também podem ser de grande valia, pois te ajudará a perceber facetas que nem sempre você foi capaz de perceber enquanto cultivador de minhocas profissional.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A doçura de caráter - O ceticismo de Pirro



Fonte da imagem: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-licao-de-pirro-para-2018/



Pirro de Élida, foi um dos grandes filósofos da antiguidade, que trouxe uma novidade no pensamento grego antigo. Mesmo sendo considerado um cético pelos escritores posteriores à sua época como exemplo de Cícero, Sexto Empírico, dentre outros , a sua filosofia pode ser considerada como cética no sentido em que aquilo que Pirro defendia era a suspensão do juízo e a busca da ataraxia através da adiaforia. Pirro por si só não escreveu nada, a não ser uma poesia dedicada a Alexandre . O que nos chegou de Pirro foi escrito por seu discípulo mais próximo Timão, que fez um relato das idéias e dos ensinamentos de seu mestre.

Pirro, viajou com Alexandre pelo Oriente, e isso fez uma grande diferença em seu pensamento, uma vez que entrou em contato com o pensamento do Oriente, especialmente com os gnosofistas, (ordem de provável origem indiana que se dedicavam ao estudo da ética e da física como prática da virtude)  e segundo se falam, Pirro presenciou a morte de Cálamo, que mesmo enquanto estava sendo queimado, mostrava-se tranqüilo em relação a situação que estava vivendo. Claro que não podemos esquecer da influencia de Demócrito de Abdera e de Anaxarco que o ensinaram muitas coisas e influenciou bastante seu pensamento como também Brison, do qual Pirro foi discípulo.

A principal característica de Pirro, era duvidar de tudo e ser indiferente a tudo, (adiaforia) esse era o ceticismo de Pirro. Para Pirro a epoché ( suspensão do juízo) é caminho que o sábio deve fazer para alcançar a paz de espírito ou ataraxia. A dúvida cética não se referiria às aparências ou fenômenos que são evidentes, mas em relação às coisas que nos são ocultas. A Pirro é também atribuída os dez tropos, ou razões da dúvida, dos quais neles se inserem as contradições do sentido.

A vida de Pirro se caracterizou pela sua total indiferença em relação às coisas, o seu principal propósito era a ataraxia e a busca de uma boa regra de conduta. Segundo Pirro, para que essa ataraxia fosse alcançada, o sábio deveria suspender seu juízo sobre as coisas. A epoché e adiaforia são as principais características de Pirro e que ele tentou passar a seus discípulos. Pirro se negava a discutir com os filósofos de sua época; a sua única resposta é que ele não sabia nada, e assim o fazia para viver uma vida isenta de preocupações, e viver tranqüilo e feliz. Pirro fez da dúvida, um instrumento de sabedoria, moderação e firmeza.

Os relatos sobre a vida de Pirro, mostram que ele vivia com seu espírito inabalável, mesmo quando as situações adversas lhe aconteciam. Sua uniformidade de alma era inalterada e praticava com serenidade a indiferença que ensinava. Era venerado por seus discípulos por viver de acordo com aquilo que pregava, e era isso que dava autoridade a seu discurso.

Concluindo, ao contrário das religiões em sua forma mais comum, nos quais se abandonam as coisas da vida na espera de uma recompensa, (quer tal recompensa seja pensada como reencarnação, lei de causa e efeito, vida eterna, etc.) a vida de Pirro era de indiferença, não por causa dessa espera, mas porque via nisso uma forma de viver feliz, era como se fosse algo de sua própria natureza essa indiferença. Algo que fica bem notado é a influência que o pensamento oriental e gnosofista teve na vida de Pirro juntamente com os pensamentos de Buda. A vida de Pirro foi portanto um exemplo para os seus seguidores, podemos afirmar que em Pirro se manifesta a ideia de que a doçura de caráter é a última palavra do ceticismo. 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

José e Maria indo para Belém.







O individualismo político como grande paradoxo do mundo globalizado nos mostra que a proposta de uma aumento da liberdade no domínio do capitalismo não passa de uma ideia abstrata e falaciosa. Quanto mais se advoga liberdade, mais se vê o recuo do sujeito contemporâneo alheio a qualquer forma de empatia para com o próximo.  Este cenário se tipifica de maneira visível no excesso de protecionismo econômico e no excesso de muros que cada vez mais cercam os territórios como forma de proteção contra o próximo visto como ameaça. É neste contexto que se coloca a questão dos imigrantes na Europa, a questão mexicana nos Estados Unidos, os Venezuelanos no Brasil e vários outros exemplos mundo afora. 

Talvez aqui esteja o cerne da proposta de Jesus tipificada nos evangelhos, uma liberdade que não passa pelo individualismo contemporâneo, mas uma liberdade que tem na comunidade a sua única condição de possibilidade. É talvez por isso que podemos dizer sem sombra de dúvida que a proposta comunitária de Jesus e dos discípulos no início do cristianismo vai na contramão da proposta do capitalismo tardio do individualismo exacerbado. Trava-se uma luta entre uma visão comunitária do humano e uma visão individualista em que nada além do sujeito importa. O que fica claro para nós é que esta dinâmica são totalmente relacionadas.  De um lado a aposta em uma possibilidade da vida comunitária para além da lógica do capital, do outro lado o individualismo como resposta última que esvazia o sujeito de todo vínculo para além de si. Claramente uma se coloca como grande antítese da outra, em que a primeira é esvaziada em seu núcleo mais íntimo e o que sobra seria apenas a sua face performática tipificada nas novas agremiações, pseudo-pautas, etc.  

Neste contexto podemos perceber porque hoje os novos espiritualismos chegam com força no nosso meio, pois eles apenas reforçam o individualismo numa busca incessante de reforçamento do eu e um esquecimento do outro.  Da mesma forma percebemos porque o discurso neopentecostal encontra grande repercussão social, pois ele apenas reflete de maneira material aquilo que os espiritualismos contemporâneos manifestam do ponto de vista majoritariamente performático.  A lógica da performance é a lógica do capitalismo tardio, e por isso que é fácil de perceber como que as duas facetas que mais crescem na religião contemporânea são facetas também performáticas, afinal essa  é a lógica defendida pelo capitalismo tardio da produção incessante. O que se produz incessantemente neste contexto é a busca de si, a visão econômica, quantitativa, performática do sujeito em que ele é avaliado pela própria dinâmica da produção incessante de si, da busca incessante do "mistério", do "novo", etc. 

Não dizemos mais que a religião é o "ópio do povo" ou "o suspiro da criatura oprimida" como Marx gostava de falar, mas dizemos que hoje a religião (pelo menos a institucionalizada) [sobre esta diferenciação crucial, leia aqui] é o sintoma do sujeito desbussolado dominado pelo capitalismo tardio. Restaurar o núcleo duro da religião talvez seja a tarefa mais árdua para os dias atuais, pois uma religião que se alia ao poder advindo do modo de produção já perdeu em grande medida a sua condição de possibilidade de alterar o status quo. O que resta para ela é apenas a reprodução cega da desigualdade, ou medidas paliativas que em nada atingem a estrutura social.  E aqui percebemos de forma fundamental a falácia do discurso da liberdade. De certa forma se é livre para se adequar ao modo de produção, mas nunca para o subverter. A partir do momento que a própria religião institucionalizada funciona como modo de perpetuação dessa dinâmica, percebemos claramente como que uma coisa se une a outra na contemporaneidade. 

Se observarmos os evangelhos percebemos que Jesus nos ensina a construir casas, nos ensina a plantar, nos ensina a dividir, mas em hora nenhuma ele propõe a construção de muros, pois a proposta cristã em seu núcleo mais íntimo nunca foi a proposta da segregação, da separação, do "nós contra eles", mas sempre foi a do acolhimento, da hospitalidade e do amor para com o próximo. Este é talvez o núcleo esquecido do cristianismo que, quando relembrado, poderá restaurar a sua importância em um mundo secularizado. 


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Camarotização, Individualismo. De Lipovetsky de volta para Marx.





Para entendermos o tema da camarotização acho que seria muito legal pegar a ideia do Gilles Lipovetsky que ele trabalha no livro Felicidade paradoxal (2007) no qual ele define as três grandes fases do consumismo no ocidente.

A primeira fase seria aquela do início da revolução industrial em que apenas uma pequena parcela tinha acesso aos bens de consumo porque todos eram muito caros. É a época que segundo ele iria de 1870 a 1930, e se caracterizava pelo pequeno acesso da população aos bens do consumo.
A partir da década de 1930, Lipovetsky aponta que houve uma melhora na economia e pelo menos nos EUA o surgimento de um revitalizar econômico (que no brasil é o período de Getúlio e o ganho de renda e questões trabalhistas, se quiser contextualizar) que permitiu que mais pessoas pudessem consumir. Esse período iria dos anos 1930 a 1960 e caracterizaria a segunda fase do consumismo na visão de Lipovetsky. Nesse período há uma maior possibilidade de consumo por parte de uma camada maior da sociedade. Dessa época é que surgem os Wallmarts da vida e as grandes lojas de departamento para tentar dar conta das novas demandas das camadas mais baixas da população. O corolário desse processo é o conhecido “American way of life” típico das décadas de 1950 e 1960.

Após da década de 1970 com os movimentos contestatórios e a queda dos chamados metarrelatos (LYOTARD, 1984), o que se começa a perceber é que o consumismo começa a ganhar novas formas e novos produtos. Essa seria a terceira fase para Lipovetsky que culminaria naquilo que vivenciamos hoje de forma extremamente visível. Nesta fase, segundo ele, o que se consome é extremamente “tudo”, ou seja, o consumismo passou a dominar todas as esferas da vida, e isso se dá a partir do momento em que o que se almeja consumir não é mais apenas um produto, mas sim uma “experiência”. O que importa mais não é tanto a aquisição de uma mercadoria, mas muito mais a “experiência diferenciada” ao lidar com aquela mercadoria. E neste sentido, para além de querer uma mercadoria, o que se quer é em última instância a experiencia. Daí que hoje em dia estar em voga a aquisição de viagens, noites em spas, suítes personalizadas, voos em cabines executivas, etc.

É neste contexto que acho interessante colocar a camarotização. Ela só é possível com o avanço do capitalismo de forma que tudo vira objeto de consumo. Ao mesmo tempo em que se perde a noção de “comum”, uma vez que tudo passa a adquirir um preço em que apenas uma pequena parcela da população seria capaz de ter acesso. Na promessa da camarotização o que está em jogo é que se é possível comprar uma experiência diferenciada. Esta proposta só é possível dentro de um individualismo ferrenho em que vivemos na contemporaneidade. Neste sentido, uma das formas de sair disso é reinventar o conceito de algo “comum” (e aí a proposta do Pierre Dardot e do Christian Laval em seu livro com o título “Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI se torna extremamente interessante). Para esses autores é reinserindo no ocidente a noção de comunidade (quer seja de interesses, quer seja de afeições físicas, etc) que será possível sair da noção de que tudo pode ser objeto de consumo, sair da dinâmica individualista mortificadora do sujeito e restaurar a dimensão do “Bem público” como algo ao qual devemos zelar por ele.

O efeito da camarotização representa esse cenário de um individualismo crescente aliado à diferença estrutural que sempre houve no Brasil entre ricos e pobres. No entanto, percebemos a partir dos textos motivadores que isso não é uma questão meramente brasileira, mas mundial. À medida que o capitalismo avança (E isso é interessante uma vez que o capitalismo hoje não seria tanto de consumo, mas muito mais de especulação) a ideia de que será possível consumir de forma diferente atrai a elite na tentativa de se diferenciar das classes mais pobres. Neste sentido podemos encontrar vários fatores psicológicos envolvidos nessa tentativa de diferenciação por parte da elite. Se por um lado a camarotização aponta para uma questão social/estrutural no contexto brasileiro, ela também aponta para ausência de referências sólidas para o sujeito contemporâneo que acaba se definindo por sua posição social, ou acesso às coisas.

Aqui comprovamos o que Marx já colocava lá no seu “O capital” de que o fetichismo da mercadoria sempre traz consigo “artimanhas teológicas” de forma que se é enfeitiçado por elas constantemente, a sacralizando. Neste sentido evidenciamos que a era do capitalismo tardio (especulativo, do consumo desenfreado) é a época do fetichismo da mercadoria de forma extremamente sutil, mas poderosa.

Referencias:

Gilles lipovetsky - Felicidade paradoxal (2007)
Jean-Luc Lyotard - A condição pós-moderna (1984)
Pierre Dardot e Christian Laval - Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI (2017)
Slavoj Zizek - Em defesa das causas perdidas (2011)




quinta-feira, 1 de novembro de 2018

[...] mas, sobre a tua palavra, lançarei a rede." Lucas 5:5





"Mestre, havendo trabalhado toda a noite, nada apanhamos; mas, sobre a tua palavra, lançarei a rede." Lucas 5:5

Uma das passagens bíblicas que gosto muito é esta passagem de Lucas em que depois de pescarem à noite toda sem conseguirem nada, os pescadores vêem entrar no barco um rabi que estava ensinando próximo ao mar. Jesus então pede para que os pescadores afastem os barcos para o mar para que as pessoas ouçam a palavra que ele proferirá. As pessoas ficaram na praia e Jesus ensinava a elas do barco.
Depois de ensinar, Jesus vira para Simão e diz para ele ir para o alto mar e lançar novamente as redes, e é nesse contexto que aparece o versículo que inicia esse texto. Simão um pouco já desanimado depois de trabalhar a noite toda sem pescar nada expressa a sua confiança na palavra do rabi. 

Esse versículo sempre me faz pensar o quanto é necessário ter em nossas vidas pessoas que se apresentam para nós e nos dizem uma palavra capaz de modificar toda uma prática que construímos ao longo da vida. Estarmos prontos para ouvir essa palavra pode trazer surpresas grandes para nós, como por exemplo trouxe para aqueles pescadores que, depois de lançarem as redes seguindo a instrução do rabi que entrou no barco, tiveram uma grande surpresa com a pescaria. Um dado que sempre me chama a atenção nesse episódio é que Jesus era apenas mais um rabi de Israel, ali nem mesmo Simão era um dos discípulos de Jesus, mas se tornará "pescador de homens" após esse episódio narrado. 

"Sobre a tua palavra lançarei a rede" aponta para mim a confiança demonstrada no outro que se mostra como alguém digno de tal confiança. Não lançamos as redes sobre "qualquer palavra", mas apenas sobre as palavras de alguns que julgamos querer o melhor para nós, sobre as palavras daqueles que nos conhecem, etc. Estar pronto para "lançar as redes" mesmo quando toda a situação parece desanimadora é um desafio diário para nós. Tem pessoas que possuem grande dificuldade em se abrir para o novo, se abrir para outras perspectivas, e isso se dá por diversos motivos, no entanto, apesar de difícil, tal mudança pode ser extremamente recompensadora, assim como foi para aqueles pescadores. 

De alguma forma a proposta de Jesus sugere uma repetição, uma espécie de "mais do mesmo", mas se pensarmos bem, a proposta de Jesus aqui se mostra extremamente subversiva do ponto de vista da prática dos pescadores. Uma espécie de corte na circularidade da situação. Se tinha alguém que poderia dizer qual o melhor horário para pescar, qual a tática correta, onde pescar, etc. não seria Jesus, mas sim os próprios pescadores. Simão, nesse sentido, abre mão do seu "suposto saber" em nome dessa nova palavra que surge para ele; evidenciando que nem sempre o nosso saber sobre as coisas nos fará ter sucesso repetindo aquilo que sabemos. 

Um grande ensinamento que acredito podermos tirar desse texto é que devemos estar sempre dispostos a lançar as nossas redes sobre as palavras daqueles em quem confiamos, daqueles que nos conhecem, daqueles que querem o melhor para nós, mesmo que isso signifique se colocar para além do cansaço da noite toda de trabalho, mesmo que isso signifique nos colocar como "não sabendo tudo" sobre a nossa área de atuação. No fundo a proposta subversiva de Jesus aponta para a humildade que devemos ter diante do que fazemos, reconhecendo que às vezes o outro pode trazer uma nova palavra. Palavra essa que realizará um milagre em nós e nos fará reencontrar a alegria de uma boa pescaria. 


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O Brasil é um oximoro



https://olhares.sapo.pt/oximoro


Há no Brasil coisas que desafiam nossa compreensão

O traficante evangélico!
O Liberal que vota em Estadista!
O Patriota entreguista!
O Batista que guarda sábado!
O evangélico que defende tortura!
O pobre de direita!
O negro neonazista!
O pobre liberal!
O funcionário público que defende estado mínimo!
O imigrante ilegal contra a corrupção!
O infiel a favor da família!
O psicanalista lacaniano pedindo retorno do pai da horda primeva!
O candidato democrático que defende o fim da democracia
A Igreja evangélica que apóia fascista
O morador no exterior que defende saída autoritária para o Brasil
O protesto a favor do retorno de um governo militar
A mídia comprada pela esquerda


O Brasil é um oximoro !



quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Nós, a esquerda ...







Como recentemente pontuou o Safatle, nós da esquerda ainda temos uma espécie de complacência com o outro na medida em que ainda acreditamos que o outro apenas "não entendeu" o nosso ponto, de que a questão é apenas de falta de elucidação. Pensamos que se explicarmos melhor, talvez seremos capazes de convencê-lo por meio da argumentação. No entanto, não é isso que acontece. O debate político nunca foi o lugar da argumentação, mas sempre dos jogos de poder. Lembremos de Sócrates com sua brilhante defesa na ágora que não adiantou de nada, pois a elite grega estava contra ele. Um dado curiosíssimo a ser ressaltado é que as duas acusações que fizeram a Sócrates foram exatamente sobre Deus (blasfemar contra os deuses da cidade) e sobre a família (perverter a juventude ateniense). Sócrates poderia argumentar ad infinitum que todos já tinham decidido sua sentença, pois o jogo de poder ali já estava mais que acertado entre as elites da época.
A política sempre se fez com luta permeado pelas condições materiais de existência dos sujeitos que são sobre-determinados por estruturas muito maiores que eles. Com advento da psicanálise ficamos conhecendo que vários desses processos se dão de maneira inconsciente, o que coloca a questão em um lugar ainda mais árido. Já não bastasse a estrutura cerceante, agora ainda se tem dinâmicas sobre as quais não há domínio, mas se é dominado por elas.
Dessa forma que hoje em dia, no cenário atual, não adianta tentar elucidar o sujeito, não é uma questão de elucidação. É questão de luta efetiva, luta política na mais autêntica acepção do termo, pois por meio de uma pretensa "comunicação universal", a la Habermas, nunca se mudou absolutamente nada. A questão é saber se a esquerda estará preparada para tal luta ou se continuará com o seu viés de "esquerda festiva" promotora de "diálogos" e "rodas de conversas" que resolvem muito pouco a vida prática das pessoas. A identificação com o discurso de ódio do sujeito é um processo inconsciente, não é um processo que se resolverá por uma elucidação. Não é um processo que uma espécie de "iluminismo ingênuo" resolverá.

O momento é delicado. É preciso pensar, mas é preciso agir !

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Os evangélicos neopentecostais e a política, ou como Cabo Daciolo não passa da face performática do discurso de ódio de Bolsonaro







Uma coisa interessante sobre as eleições de 2018 tem a ver com a população evangélica e principalmente a população evangélica neopentecostal. (Caso queira ver a divisão entre os diversos evangélicos, clique aqui) O povo neopentecostal (e aqui uso o termo como "qualquer denominação que aceita a teologia da prosperidade, quer seja de maneira soft, ou mais hard, ou seja, desde uma Batista Getsêmani, Batista da Lagoinha até uma Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, etc.) conta com um candidato que exemplifica de maneira extremamente crua a sua forma de se relacionar com o mundo e com a política que é o Cabo Daciolo. 

Cabo Daciolo não faz questão nenhuma de esconder a sua filiação neopentecostal, usa os mesmos discursos que seriam feitos em qualquer culto neopentecostal, fala em línguas, canta mantras evangélicos "ad infinitum" durante vídeos, acredita piamente que o solução para o Brasil é a evangelização de todos, para que todos aceitem a palavra de Deus como única palavra de salvação, etc. Cabo Daciolo também acusa o diabo por diversos males que acometem o Brasil e acredita que por meio da oração e por meio de um jejum no monte ele fortalecerá a sua campanha e fará com que Deus o ajude para se tornar o presidente do Brasil e limpar o Brasil de todo o pecado por meio da disseminação da palavra de Deus. Cabo Daciolo tem visões, é profeta, pastor, preside uma igreja, enfim, faz tudo o que uma pessoa neopentecostal em posição de liderança é chamado para fazer.

Qualquer pessoa minimamente familiarizado e frequentador de uma igreja com o discurso neopentecostal deveria encontrar no cabo Daciolo a sua legitimação mais óbvia, ou seja, deveria ver nele uma espécie de "enviado de Deus", um "profeta levantado pelo Senhor" para fazer a obra de salvação do país. No entanto, assim como o grande problema da classe média brasileira é não se reconhecer como pobre e explorada, assim também um grande problema para o povo neopentecostal é não se reconhecer como neopentecostal. Talvez para muitos que leem esse texto agora não há simplesmente nenhuma aproximação entre a sua crença e as do neopentecostais. Muitos nem mesmo se consideram neopentecostais, pois pensam que neopentecostais são apenas as igrejas mais eufóricas, no entanto mantém a mesma prática, e em grande medida as mesmas crenças, tais quais as descritas acima. 

O que salta aos olhos, no entanto, é que vários evangélicos neopentecostais (e alguns não tão neopentecostais também) tem se manifestado de forma veemente a favor da candidatura de Bolsonaro, um candidato que, dentre outras coisas, defende tudo o que um cristão não deveria defender, como por exemplo, "tortura", "homofobia", "violência", "ditadura", "torturadores", etc. (O fato de ainda ter que explicar isso para alguns evangélicos se torna algo extremamente surreal na época em que temos inúmeras informações e vídeos disponíveis, acesso ao texto bíblico, dentre outras coisas) Para além desse caráter extremamente óbvio do porquê alguém que se diz cristão não deveria apoiar um sujeito com um proposta tão violenta e cega como a do Bolsonaro, chega a ser extremamente curiosa a preferência dos evangélicos neopentecostais pelo discurso violento do Bolsonaro, ao invés do discurso mais "profético" do Cabo Daciolo. 

Cabo Daciolo é visto como motivo de chacota para vários evangélicos (que acreditam basicamente nas mesmas coisas que Cabo Daciolo) de forma que apoiar tal candidato seria demonstração da mais pura loucura. Ou seja, do ponto de vista prático os próprios neopentecostais vêem que esse discurso que eles mesmos propagam se tornam extremamente bizarro, no entanto, ao apoiar um discurso como de Bolsonaro, os mesmos evangélicos não percebem que o que defendem é o mesmo discurso extremista de Cabo Daciolo, só que de maneira muito mais violenta e menos velada. Esse tipo de adesão só é possível porque a grosso modo a população evangélica neopentecostal se identifica em sua instância mais íntima com o discurso violento de Bolsonaro do que o discurso espiritual de Cabo Daciolo.  

De uma certa forma podemos entender que essa preferência dos evangélicos pelo discurso de Bolsonaro evidencia a face oculta daquilo que cabo Daciolo mostra, ou de maneira mais clara, aquilo que a prática evangélica neopentecostal mostra. Fica bastante claro para qualquer observador que essa performance evidenciada nos cultos neopentecostais e que cabo Daciolo expõe de forma nua e crua não passa exatamente disso, uma performance que esconde o discurso violento que Bolsonaro traz a tona. O "deus vivo" pregado pelos cultos neopentecostais não passa do "Deus violento", do "Deus que quer extirpar da face da Terra todos os que são contra as suas ideias", é aquele "Deus juiz severo" que para além de amor também é justiça. (Justiça essa que não passa de outro nome para ódio divino dentro do discurso neopentecostal). Essa performance neopentecostal, no entanto, só pode ser levada a sério, aparentemente, nos cultos, naquelas 2 horas em que o fiel se encontra no templo. Apenas naquele momento "somos todos irmãos", apenas naquelas horas do louvor que "somos corpo bem ajustados, totalmente ligados unidos em amor", mas no momento em que o culto acaba, no momento em que o êxtase travestido de "presença do espírito" passa, lá está novamente o evangélico padrão apoiando a tortura, defendendo "bandido bom é bandido morto", defendendo "violência se combate com violência", etc. 

O mesmo pastor que é capaz de gritar "santo, santo, santo" por 20 minutos durante uma música, que faz campanha de "não cortar a barba", que "prega o avivamento", que é líder de uma igreja que não vai cessar as 24 horas de oração por dia enquanto "Belo Horizonte não for do Senhor Jesus" é o mesmo que defende a candidatura de um candidato como Bolsonaro. Isso evidencia o que citamos mais acima, isto é, que cabo Daciolo é a face performática da violência que Bolsonaro evidencia, e Bolsonaro é a face oculta do que está por trás da performance do crente neopentecostal. 

Quando, por exemplo, André Valadão (pastor da igreja Batista da Lagoinha) vai de púlpito convidar a todos para ouvir uma palestra de Dallagnol e diz publicamente que apóia um candidato como Bolsonaro; quando Jorge Linhares (pastor da igreja Batista Getsêmani) apóia Bolsonaro e diz que "o conselho de pastores de Minas te abençoa", fica bastante claro que o que está em jogo é algo muito além do mero apoio político, mas o que está em jogo é como que a representatividade do ódio encontra morada dentro do próprio discurso neopentecostal. A performance neopentecostal oculta a sua própria face violenta daqueles que se sentem "mais próximos de Deus do que qualquer outra religião", daqueles que se sentem no direito de dizer "quem é, e quem não é de Deus", etc.  Essa violência nem aparece de forma tão velada assim, basta observarmos os famosos cânticos que essas igrejas entoam durante os cultos em que a face violenta do "senhor dos exércitos" se mostra nitidamente.

Do ponto de vista do discurso performático seria muito mais óbvio que a população evangélica neopentecostal (que é a maior no Brasil segundo censo do IBGE) apoiasse em massa a candidatura de Cabo Daciolo, afinal, ele se mostra um legítimo representante de toda uma categoria da sociedade, no entanto, a partir do momento que percebemos que Cabo Daciolo evidencia apenas uma performance e que a identificação do evangélico neopentecostal é com o discurso de ódio e violento de Bolsonaro, percebemos que o que está em jogo no discurso neopentecostal é apenas mais do mesmo, ou seja, um discurso violento, excludente, que simplesmente não percebeu a proposta dos evangelhos, mas se perde em êxtases narcísicos travestidas de "espiritualidade". 









quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O perigo de se flertar com o mal




Se pensarmos bem, o conceito de tolerância é um conceito extremamente vago e geralmente utilizado com um viés ideológico extremamente problemático. Se observarmos, por exemplo, o discurso de Martin Luther King, (quem quiser pode baixar o discurso e ler online) em hora nenhuma ele menciona que deveria haver tolerância quanto ao racismo. Em hora nenhuma ele propõe um "diálogo" para resolver os problemas, pois ele sabia que em determinadas situações o diálogo não é mais possível. Ele sabia que o discurso da "tolerância" conduz não raras vezes exatamente ao oposto do que ele se propõe. É por isso que precisamos sempre deixar claro a nossa posição, é preciso ser firme contra os discursos de ódio, contra os discursos que ferem a dignidade do sujeito, quer ele seja um discurso religioso, moral, institucional, etc. Não podemos jamais permitir que esses discursos encontrem eco entre nós. Para isso não há diálogo, pois a mínima abertura para isso pode abrir as portas para o que há de pior entre nós.
É exatamente neste sentido que qualquer discurso de ódio que vem seguido da fala "foi brincadeira", ou "não quis dizer isso" deve ser imediatamente interditado. Não deve haver espaço entre nós para que tais discursos de ódio sejam minimizados, pois sob a fala do "humor" da "brincadeira" se revela uma face cruel do sujeito. 

É sabido de todos nós que ninguém nasce odiando ninguém, ninguém nasce com preconceito com ninguém, mas isso é sempre ensinado por uma cultura que tem determinados valores. Valores estes que nunca são "eternos", mas sempre criados socialmente para cumprir demandas específicas no desenvolvimento de cada comunidade humana. É neste sentido que qualquer discurso em nome de "valores eternos" não raramente costuma cair em discursos de ódio contra os semelhantes, ou contra aqueles que não compartilham de tais valores. 

É interessante notar que o discurso de ódio também é construído socialmente e vai encontrando eco à medida que é propagado, de tal forma que entre nós, em pleno mundo contemporâneo, eles se tornaram a tônica até mesmo entre os cristãos que supostamente deveriam ser os primeiros a irem contra tais discursos.  Um movimento interessante que se percebe é que começa-se apenas flertando com o ódio; isto é, começa-se com a pura negligência das questões estruturais que envolvem a situação do sujeito que acaba sendo responsabilizado sem levar em consideração toda a estrutura que o assola; obviamente que a estrutura que envolve o sujeito de forma alguma o determinará de maneira última, mas qualquer análise do comportamento do sujeito que não leve em conta o seu meio não passa de pura análise ideológica. 


Em um segundo momento, quando o sujeito assusta, já está tomado pelo ódio de uma forma tal que surgem os discursos de "penas mais duras para bandidos", "bandido bom é bandido morto", "tem que matar esses judeus todos". Assim como esse discurso não nasceu do nada, ele também não cresce do nada. De alguma forma esse discurso alimenta em grande medida um desejo do próprio sujeito, há uma espécie de identificação violenta nesse indivíduo que vê que bandido bom é bandido morto, há uma identificação violenta desse sujeito com o discurso de ódio que ele propaga. Se quisermos podemos até mesmo utilizar as palavras bíblicas  de que "a boca fala do que tá cheio o coração". Quando alguém corrobora um discurso violento, um discurso em que despreza o outro, um discurso em que torna a causa alheia uma causa não digna o que se percebe é que esse sujeito de fato pensa assim, no entanto ele não se vê pensando assim; ele pensa que de fato está corroborando uma causa justa. Como aquela criança que realmente acredita que há soluções simples para causas complexas. 

Quando esse sujeito defende a castração química para acabar com os estupros, o que ela não percebe é que essa solução pueril em nada resolve o problema, mas apenas desumaniza ainda mais um sujeito já desumanizado. Quando o indivíduo de fato pensa que "bandido bom é bandido morto" o que ele não percebe é que o conceito de "bandido" esconde para tal sujeito um enorme preconceito, pois ele tem em mente apenas um tipo de "bandido" sem em hora nenhuma levar em conta que o termo "bandido" é extremamente amplo, de tal forma, que ele mesmo poderia ser incluído como tal bandido uma vez que o discurso fosse alargado. O "bandido" para tal sujeito é apenas o negro pobre, o morador de rua, o presidiário, mas nunca o que falsifica uma carteira de estudante para entrar num show pagando meia, o que aflige a lei para propagar discursos de ódio, etc. Esse sujeito tomado pelo ódio só vê a partir do seu próprio preconceito. Se bandido é aquele que está agindo contra a lei e deve ser morto, qualquer um que desrespeita a lei deveria ser morto seguindo essa lógica, até mesmo quem propaga tal discurso, pois incitar o ódio é em si um crime. Mas por que não se pede a morte desse bandido e apenas do outro? Na realidade o que se pede é a morte do diferente, a morte daquele por quem se tem preconceito, por quem o sujeito julga ser menos humano que a si próprio de forma que pode ser tratado apenas como um animal. 


Flertar com o mal é sempre perigoso, ainda mais porque (como já dizia o mito bíblico) ele nunca chega para o sujeito com sua face má, mas travestido de promessas de segurança." Essa é a mesma tentação do jardim do Éden. A tentação de que por meio de uma ação simples, por meio de uma ação infantilizada, por meio de uma escolha do mais fácil será possível ter um poder maior, uma visão melhor das coisas, um mundo melhor, etc. É por isso que se flerta com o mal. A promessa de segurança que o discurso violento traz se mostra para o sujeito uma solução última devido ao "caos do jardim". "É certo que não morrereis" é ao mesmo tempo a promessa e a crença desse sujeito propagador do discurso de ódio. Ele acredita que ele estará isento do ódio propagado socialmente, ele acredita infantilmente que os odiadores saberão diferenciar o "cidadão de bem" do "bandido"; eles acreditam infantilmente que há uma linha divisória nítida entre eles, quando na realidade não há linha nenhuma que os separa. É neste sentido que nunca se deve aceitar os discursos de ódio sob pena de que a banalização do mal seja a tônica. Tal banalização do mal nunca deve ser a tônica de nenhuma sociedade, pois a partir do momento que ela se torna a tônica estamos à beira do colapso civilizacional. 

Uma tática conhecida do nazismo foi transformar todos os judeus em bandidos, em animais, para que a partir da desumanização deles a população não visse que estavam atacando aos seus semelhantes, mas sim a uma espécie menor, a um "não-humano", que por isso "merecia" ser tratado de forma desumanizada. E na maioria das vezes não eram pessoas "ignorantes", não eram pessoas "iletradas", "alienadas", etc. Vários oficiais da SS possuíam diplomas de curso superior, possuíam doutorados em suas áreas, mas mesmo assim aderiram ao discurso propagado de Hitler na desumanização dos judeus, dos gays, etc. O discurso de ódio é construído socialmente assim como qualquer outro discurso, e se aproveita dos momentos de agitação política para se propagar. Este é o mesmo movimento que culminou no holocausto, mas que alguns entre nós insistem em não enxergar a semelhança. É exatamente neste sentido que temos que admitir que não é uma questão de ignorância do sujeito, mas sim de uma identificação do sujeito com tal discurso, de forma que ele "de fato" pensa assim. E isso talvez seja o que mais assusta, ainda mais quando vindo de pessoas que supostamente deveriam propagar o amor ensinado por Jesus, aquele bandido segundo Roma; aquele presidiário, etc. 

É por isso que nunca devemos aceitar e nem tolerar os discursos de ódio. Devemos sim lutar contra eles e impedirem, no que depender de nós, que eles se propaguem. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Sobre o que Jesus não disse






Jesus nunca disse nada sobre a questão de gênero.
Jesus nunca disse nada sobre casamento gay
Jesus não disse nada sobre o uso de contraceptivo
Jesus não disse nada sobre o aborto
Jesus não disse nada sobre regime político
Jesus não disse nada contra os imigrantes
Jesus não disse nada sobre sistema econômico
Jesus não disse nada sobre sexo antes do casamento
Jesus não disse nada sobre sexo de maneira geral
Jesus não disse nada sobre comer ou não comer algo
Jesus não disse nada sobre cigarro
Jesus não disse nada sobre maconha
Jesus não disse nada sobre drogas de maneira em geral
Jesus não disse nada sobre futebol
Jesus não disse nada sobre uso de roupas
Jesus não disse nada sobre formas de se relacionar com seu corpo
Jesus não disse nada sobre televisão
Jesus não disse nada sobre religiões de matrizes africanas
Jesus não disse nada sobre os negros
Jesus não disse nada sobre os imigrantes
Jesus não disse nada sobre socialismo
Jesus não disse nada sobre fetos
Jesus não disse nada sobre bons costumes
Jesus não disse nada sobre internet
Jesus não disse nada sobre ideologia
Jesus não disse nada sobre direita
Jesus não disse nada sobre esquerda
Jesus não disse nada sobre centro
Jesus não disse nada sobre intervenção do Estado na economia
Jesus não disse nada sobre a proposta liberal
Jesus não disse nada sobre comunismo
Jesus não disse nada sobre ideologia
Jeus não disse nada sobre tatuagem
Jesus não disse nada sobre bebida alcoólica



Esse é o Jesus dos evangelhos. Se para você isso soa por demais estranho sugiro que releia os evangelhos e tente encontrar alguma fala de Jesus sobre estas coisas apontadas aí acima. Como você não vai encontrar absolutamente nada sobre esses temas, pare de forçar textos bíblicos como pretexto para preconceitos institucionais, culturais, sociais, etc. 


No entanto, os evangelhos nos mostram um Jesus super preocupado com a justiça social, com a vida em comum de todos os que o seguem, com o não acúmulo de riqueza. Jesus se mostrou muito preocupado quanto à hipocrisia daqueles que guardavam a lei, mas se esqueceram do espírito dela, ou seja, se preocupavam com a letra da lei, enquanto maltratavam o próximo, expulsavam os imigrantes, roubavam dos pobres, maltratavam as mulheres, não cuidavam dos órfãos, ignoravam as viúvas, etc. 
Jesus se mostrava extremamente preocupado em acolher as prostitutas, os ladrões, os considerados impuros, os leprosos, os convalescidos, em lhes dar uma dignidade que o status quo não lhes permitia ter. 

Jesus se preocupava constantemente com a humanidade dos que com ele conviviam, com o questionamento que os seus próximos levantavam, com as questões que eles lhe faziam. O Jesus dos evangelhos nunca incitou o ódio, nunca incitou o discurso xenofóbico, excludente, machista, misógino, desumanizador, colonialista; pelo contrário, Jesus esteve sempre ao lados dos mais pobres, dos que não tinham parte na terra. Esse é o Jesus descrito nos evangelhos; um Jesus que foi considerado um criminoso por Roma por ir contra a casta sacerdotal de sua época, um Jesus que morreu como ladrão, como presidiário, como quem sofredor da injustiça de um regime opressor. 

Jesus é um exemplo de que nem sempre a lei é justa, que nem sempre a legalidade anda de mãos dadas com a justiça. Já em Jesus percebemos claramente que a justiça em sua forma institucional está sempre ao lado dos poderosos, está sempre do lado de quem tem poder e raramente em favor do pobre. Por isso talvez que a proposta de Jesus se torna extremamente subversiva, pois propõe um novo olhar sobre a justiça, não a legalidade da lei escrita, mas a avaliação da humanidade da pessoa em primeiro lugar; não a condenação indiscriminada, mas o avaliar atento das demandas que coloca o sujeito sempre como centro da lei e não a letra morta que não vivifica absolutamente nada. Jesus denuncia constantemente que uma lei que abre mão da humanidade do sujeito não deve ser cumprida; se isso soa muito estranho, apenas relembre o caso da mulher adúltera em que a fala de Jesus foi simplesmente "nem eu tão pouco te condeno".  , relembre o caso de Jesus sobre curar no sábado, sobre os sacrifícios no templo, sobre as regras de pureza e impureza, sobre a cura dos leprosos, etc. etc. etc. 

Em todos esses casos a prioridade de Jesus nunca foi a letra da lei, mas sim o espírito da lei que tem no homem a sua prioridade. A partir do momento que a lei é utilizada para desumanizar o homem, para o humilhar, para lhe roubar a dignidade essa lei não é para ser cumprida. Isso pode soar extremamente estranho para os nossos ouvidos tão acostumados a vincular a execução da lei com "ordem de Deus", mas para Jesus o homem está acima da lei e é esse o ponto esquecido constantemente na subversiva proposta de Jesus. Uma lei só é boa se humaniza o homem, e é má quando desumaniza o homem. Esse é o Jesus dos evangelhos.

O nazismo era legal
A ditadura era legal
O apartheid era legal
A escravidão era legal
O Klux Klux Klan era legal

Se você pensa que Jesus teria apoiado qualquer um desses movimentos, então sugiro veementemente que releia os evangelhos. 






quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Édipo sem complexo.





Édipo Rei

A história do Édipo Rei de Sófocles é um clássico da tragédia grega e foi muito utilizado por Freud para expor sua teoria, embora muito contestada a forma como ele utiliza este mito.
O mito do Édipo Rei de Sófocles, se insere dentro do cenário da tragédia grega antiga e reflete exatamente como que ela era vista pelos gregos dessa época.
A tragédia grega se destaca por colocar o herói em uma situação que lhe é contrária àquilo que se espera, deslocando portanto o foco da trama. Segundo aponta Jean Pierre Vernant em seu livro o herói na tragédia grega é tipo como pego pela palavra, assim como acontece na história do Édipo Rei. A história de Édipo Rei nos traz uma riqueza de detalhes sobre como era o poder e o regime jurídico das cidades gregas daquela época.

Algo que é identificado no estudo do Vernant, é a questão da ambigüidade e da reviravolta, que segundo ele é algo que todos os trágicos gregos recorriam como meio de expressão e modo de pensamento. Essa ambigüidade reflete-se segundo uma tensão de valores que se tornam inconciliáveis a despeito de sua igualdade. Segundo Vernant a ambigüidade se refletia em cada herói em seu universo próprio, e ele era como que pego na palavra que proferiu, e isso era algo recorrente e ele o chama de ironia trágica. Essa ironia, consistia no fato de que àquilo que era dito pelo herói acabava retornando para ele mesmo, como uma forma de punição dos deuses, pela falta de conhecimento por parte do herói sobre o que era a verdade dos fatos. Isso é muito bem visto na história do Édipo, quando àquilo que ele deseja que aconteça ao personagem central da trama volta-se a ele mesmo no decorrer da peça. A mensagem trágica torna-se-lhe inteligível na medida em que arrancado de suas incertezas e de suas limitações antigas percebe a ambigüidade das palavras, dos valores, da condição humana.
Vernant trata também dos subentendidos utilizados de forma consciente, e isso depende de um certo conhecimento anterior por parte dos espectadores da peça, que já iam para o teatro com todo um conjunto de informações que seriam necessários para a compreensão da tragédia.
A verdade na tragédia grega, está sempre presente, só que na maior parte dela de forma oculta, de forma que, só os espectadores que no caso de estar assistindo os dois lados da história se assemelham aos deuses, que conseguem conhecer todos os discursos e prevê o que vem à frente. A diferença é que ao contrário dos deuses, os espectadores não interferem no desenrolar da peça, já os deuses, sempre são recorrentes nas tragédias gregas. Édipo mesmo atribui aos deuses o seu afortunado destino. Quando Édipo fala o que será feito ao assassino de Laio, ele se coloca como juiz de si mesmo, pois o que ele deseja ao malfeitor, irá acontecer a ele também. Essa é a forma como a tragédia se desenvolve normalmente, mas no Édipo- Rei ela não acontece como uma oposição dos valores nem em uma duplicidade de personagens , mas diverte-se com a vítima. No caso de Édipo, é ele quem é o joguete em toda a trama. É a sua vontade de descobrir o assassino e desmascarar o culpado, mesmo tentando ser impedido por Jocasta, Tirésias e o pastor , achando com isso que está cumprindo seu papel diante da cidade é o que o leva de herói para vilão, pois ao descobrir o assassino de Laio, Édipo se descobre na trama. 
Essa atitude Édipo faz parte de sua personalidade. Ele não é homem de desistir das coisas, gosta de ir até o final mesmo que com isso possa descobrir algo que não lhe agrada que é o fato de saber que é ele mesmo o joguete do início ao fim. Édipo é portanto duplo, quando ele fala, acontece-lhe dizer outra coisa contrária ao que ele está dizendo. Ele é portanto um enigma que só se resolve quando ele mesmo descobre que o que ele tinha por verdade não o é mais. Édipo portanto não escuta o discurso que ele mesmo diz sem saber, e é exatamente essa a verdade que está oculta; a única coisa autêntica.
Essa verdade oculta só é compreendida por quem tem o dom da dupla escuta ou da dupla visão como é o caso do adivinho Tiréisias. O discurso de Édipo se distingue entre o humano e o divino que irão se encontrar no final da peça, quando o problema estará resolvido e o enigma desfeito. É nessa hora que se dá a “reviravolta” da ação em seu contrário.
Quando Édipo soluciona o enigma, ele encontra ele mesmo, e esta identificação do herói provoca uma reviravolta completa da ação. A atitude de Édipo inverte as posições dentro da tragédia formulada por Sófocles.
Ao final da pesquisa feita por Édipo o justiceiro se identifica com o assassino e portanto descobrir quem matou Laio, é também descobrir quem é Édipo. A pesquisa por justiça por parte do rei de Tebas, torna-se uma pesquisa sobre quem realmente é o rei de Tebas. Essa reviravolta e ambigüidade é bem destacada por Vernant quando cita que o estrangeiro de Coríntio é, na realidade nativo de Tebas; o decifrador de enigmas, um enigma a ser descoberto, o justiceiro, um criminoso; o clarividente um cego; o salvador da cidade, sua perdição. Édipo que para todos era o maior dos homens, e o melhor dos mortais, se torna o mais infeliz e pior dos homens, um criminoso, e objeto de horror aos seus semelhantes, odiados pelos deuses reduzidos à mendicância e ao exílio.
A tragédia grega usava palavras gregas semelhantes para dizer coisas que no contexto da peça eram contrárias. A situação de Édipo depois de sua descoberta se torna a de um miserável que não merece o convívio com a cidade. A sua descoberta o expulsa do mundo visível e o coloca no mundo de Tirésias o vidente que pagou com seus olhos o dom da dupla visão.
Considerando o ponto de vista humano Édipo é o chefe clarividente, igual aos deuses, mas considerando do ponto de vista dos deuses ele aparece cego e igual ao nada. A reviravolta da ação, como a ambigüidade da língua, marca a duplicidade de uma condição humana, que, à maneira do enigma, se presta a duas interpretações opostas. A linguagem humana se inverte quando os deuses falam através dela.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Da Doxa à Episteme na época da pós-verdade. A tarefa da Filosofia





A tarefa da Filosofia, desde Platão, tem sido a de fazer o homem sair do campo da Doxa em direção a Episteme. Tal caminho, no entanto, se torna extremamente árduo, cansativo, demanda um esforço hercúleo por parte da pessoa que almeja de fato sair do reino da opinião em direção ao conhecimento. Não é atoa que entre os gregos era muito conhecida a noção de "Filoponia", ou seja, o "amor pela dor" como forma de se alcançar a "Filosofia", o "amor pela sabedoria". Sem esse caminho árduo do abandono das opiniões é impossível alcançar o conhecimento. 

Por mais que o esquema platônico pressuponha uma certa divisão entre mundo sensível e inteligível que hoje em dia basicamente não se aceita mais, a noção platônica de que o caminho para o conhecimento se dá pela constante eliminação da "opinião" para irmos alcançando o conhecimento ainda se faz extremamente pertinente para pensar a nossa época. Nossa época que curiosamente cada vez mais faz o caminho contrário ao proposto por Platão. A nossa época hipermoderna se caracteriza por aquilo que Lyotard chamou de época da queda dos metarrelatos, ou seja, uma época em que as instituições, ou os discursos que organizavam a vida do sujeito passaram a não mais fazer sentido, perderam o seu caráter explicativo, etc. Se antes o acesso do sujeito à realidade se daria permeado por esses metarrelatos, hoje com a queda deles, a relação do sujeito com a realidade se dá de forma não-mediada por esses discursos. Basicamente a segurança oferecida por tais discursos é refutada em nome da liberdade de poder cada sujeito criar o seu próprio discurso. Esse é o famoso drama apontado por Bauman de que a grande questão contemporânea seria de fato encontrar uma forma de fechar a equação entre "segurança" e "liberdade", pois quanto mais se tem segurança, menos se tem liberdade, e quanto mais se tem liberdade, menos se tem segurança. 

Se por um lado os metarrelatos ofereciam a segurança para o sujeito lidar com o mundo, entrando nele por meio de discursos já pré-estabelecidos, ao mesmo tempo eles cerceavam o sujeito de várias coisas. O sujeito pagava a segurança que os metarrelatos garantiam com uma diminuição da liberdade. Os movimentos contestatórios da década de 60 contestam exatamente esses discursos "aprisionadores" tais como a "religião", "família", "estado", "política", etc. como instituições que limitam a liberdade do sujeito e por isso devem ser eliminadas para que o sujeito possa de fato ser livre. Dessa forma abrem mão da segurança que os discursos proporcionavam em nome da liberdade de ser quem quiser, fazer o que quiser, etc. 

Concomitante a isso vemos o crescimento e o aprofundamento do capitalismo e o surgimento daquilo que ficou conhecido como "capitalismo tardio", ou seja, o capitalismo pós década de 70 em que as relações de consumo já estão extremamente consolidadas, e o capitalista se torna muito mais um capitalista especulativo do que propriamente um capitalista que simplesmente "detém os meios de produção". Esse refinamento da posição do capitalista contemporâneo, aliado à disseminação massiva da ideologia consumista em todas as esferas da sociedade coloca esse sujeito sem metarrelatos em uma situação extremamente conflituosa e angustiante. Diante das diversas opções de consumo e sem nada para regular o seu gozo, o que resta para tal sujeito é apenas a sua opinião, os seus gostos pessoais como forma de lidar com as diversas demandas da vida cotidiana. Na queda dos metarrelatos a própria noção de "verdade" se perde e o sujeito da nossa época é aquele que toma como verdade basicamente a sua opinião sobre um determinado fato. 

A partir do momento que a própria noção de verdade se torna obsoleta o que vemos acontecer é a propagação daquilo que o dicionário Oxford definiu como palavra do ano de 2016 que é o conceito de "pós-verdade", ou seja, a predominância da opinião do sujeito sobre os fatos. Não importam os fatos, o que importa é apenas a opinião do sujeito, o que ele resolve acreditar e cada vez mais o diálogo se torna extremamente impossível, pois o que se percebe a cada dia é uma resistência muito grande para o debate, para a argumentação e isso se evidencia em todas as esferas da vida cotidiana. Desde assuntos menos sérios até assuntos mais complexos a preguiça para o diálogo, a apropriação de frases prontas sem reflexão, a tentativa de "igualação de discursos" como forma de evitar o debate são práticas extremamente comuns a quem tenta qualquer tipo de debate. Na religião e na política esse tipo de argumento se sobressai na maioria das vezes. Sob a assertiva "todos os políticos são farinha do mesmo saco", ou, "todas as religiões estão buscando ao mesmo Deus apenas de maneira diferente", o que está envolvido senão a recusa de toda forma sistemática de diferenciação de discursos? O que está em jogo senão o abrir mão do caráter dialogal em nome de uma "saída fácil" para questões complexas? Não seria esse o grande sintoma contemporâneo da eliminação do diferente em nome de uma pseudo-aceitação de todos em um processo de igualação que longe de "aceitar o diferente" o elimina no seu núcleo mais profundo?

Nessa recusa do diálogo vemos acontecer o inverso daquilo que Platão propunha que deveria ser o caminho para o conhecimento. Na épóca da hiperespecialização em que o conhecimento se torna extremamente ramificado, hiperespecializado, é impossível para qualquer indivíduo manter-se atualizado de todas as áreas, mas paradoxalmente, dele é exigido respostas para todas as questões do seu tempo, desde questões éticas como aborto, eutanásia, a questões políticas, religiosas, familiares, etc. O sentimento de preguiça (ou má-fé) toma conta do indivíduo de forma que ele se recusa a pensar de fato as coisas e passa a assumir apenas a sua opinião como balizas para todas as questões se fechando para o diálogo que o levaria a sair da sua opinião em direção ao conhecimento. Curiosamente a proposta platônica de saída da doxa rumo a episteme envolve exatamente esse caráter dialogal e era de se esperar que em uma era "pós-iluminista", "esclarecida" o diálogo fosse de fato algo que a maioria das pessoas estivesse disposta a realizar. No entanto, cada dia o que se vê é o oposto. O sujeito contemporâneo caminha a passos largos para o interior da caverna onde reina a opinião e se afastando do diálogo se recusa a conhecer as coisas na suas nuances mais profundas. 

Neste sentido a filosofia se torna cada vez mais desprezada, mas cada vez mais necessária. Em uma época em que a noção de verdade se perdeu e se transformou em uma questão de opinião, resgatar a noção de verdade, não como verdade absoluta (a la Platão e alas mais conservadoras do cristianismo e outras religiões), mas como noção orientadora do diálogo se torna novamente uma tarefa árdua para a filosofia. Penso que sem se resgatar esta noção a tendência são discursos cada vez mais polarizados, cada vez mais conservadores, mais rígidos em que a vida vai se perdendo e discursos cada vez mais "totalitários" vão aparecendo. Árdua a tarefa da Filosofia em nosso tempo, mas seguimos propondo o diálogo, seguimos tentando o diálogo por mais difícil que ele seja, pois no meu caso, acredito que a verdade liberta, embora cada dia seja mais difícil encontrar e definir o que seja essa verdade. Uma coisa eu sei, verdade não é opinião, e essa defesa precisa ser feita cada vez mais enfaticamente em nossos dias de pós-verdade. "E conhecereis a verdade e ela vos libertará" já dizia o autor do evangelho de João, mas quando perguntado por Pilatos "o que é a verdade?" o próprio Jesus não deu resposta, ficou mudo, ou seja, a verdade liberta, mas defini-la, às vezes exigirá de nós um silêncio para a reflexão que se torna ouro em tempos hipermodernos.