quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A liberdade do outro





Liberdade e Outro são dois conceitos amplíssimos em diversas áreas do conhecimento. Desde a filosofia, passando pela teologia, pela psicanálise, a psicologia, todas elas refletiram e refletem bastante sobre esses conceitos formulando diversas definições para eles. Neste sentido esse texto não tem a pretensão de elucidar, nem mesmo aderir a uma linha específica em relação aos termos utilizados, mas apenas pontuar uma pequena reflexão sobre isso que chamamos "liberdade do outro."

Um ponto que sempre insisto com as pessoas e com a qual eu sofro sempre é a questão sobre a liberdade do outro. Tal liberdade, para mim, deve sempre ser respeitada em todas as situações, independente do quanto isso possa me fazer sofrer. 
A liberdade do outro consiste em levar em conta que aquilo que para você é imprescindível, para o outro é apenas um detalhe. É levar em conta que nem sempre o outro dará a mesma importância para as coisas que você dá suma importância, e isso em nada desqualifica ou diminui o que o outro sente por você ou o quanto ele te deseja o bem. 

A nossa tendência, no entanto, é querer transformar o outro em uma espécie de reflexo de mim mesmo, com as mesmas atitudes, dando importância para as mesmas coisas, fazendo tudo do jeito que eu faria, etc. Essa doce projeção de mim no outro para torná-lo mais fácil de ser amado. O abismo que me separa do outro, no entanto, solapa constantemente essa minha tendência narcísica e mostra que o outro é irredutível às minhas exigências, às minhas demandas, etc. 

Esse tipo de reflexão cabe em qualquer tipo de relacionamento. Desde o relacionamento matrimonial até as relações de amizade e camaradagem. Reconhecer a liberdade do outro em fazer o que lhe aprouver requer de nós uma certa maturidade que várias vezes nós ainda não temos. Não que isso não nos fará sofrer. Várias vezes a liberdade do outro nos fere, pois ele não cumpre com o que nós esperamos dele, ele faz as coisas de forma que nós não faríamos e isso pode várias vezes nos incomodar, mas se vamos respeitar tal liberdade é imprescindível que aprendamos a lidar com essas diferenças.

Para nós, os neuróticos, toda e qualquer alteração no ritmo normal das coisas já é um grande abalo na ordem interna. Temos a tendência, então, a criar para nós uma certa indiferença em relação às coisas para que não soframos com ela, e isso várias vezes ajuda a lidar com a liberdade do outro. No entanto, várias vezes essa dinâmica não funciona e a quebra da rotina traz um sofrimento enorme que só poderá ser restabelecido (em curto prazo) com o retorno da rotina, ou (em longo prazo) com um tratamento psicológico, psiquiátrico, etc. Mas nem mesmo esse fato, para mim, elimina a completa liberdade do outro de não estar preso às minhas neuroses, às minhas idiossincrasias. É sempre um longo caminho a ser percorrido entre o meu desejo e o desejo do outro. 

O outro é aquele abismo intransponível como nos alertava Levinas; ele é aquele que coloca um fim a mim mesmo, pois ele me mostra constantemente que eu não sou tudo, que eu não posso tudo. Ele me mostra que ele não pode ser reduzido a mim e por isso ele traz consigo uma condição de liberdade que é assustadora e traumatizante para mim. Lacan, nesse mesmo sentido, já nos advertia que o grande desafio para o sujeito é lidar com a pergunta sobre o desejo do outro. "O que o outro quer de mim?" é a pergunta que angustia o sujeito, pois o outro é aquele que me convoca a respondê-lo e responder a mim mesmo em relação ao meu desejo. 

A liberdade do outro envolve também a forma como ele vai lidar com as convenções sociais, com o seu papel social, etc. e isso, por mais estranho que possa parecer para nós, é algo que deve ser entendido como fruto dessa mesma liberdade que estamos lidando, ou seja, o outro é livre para se adequar ou não no papel que se espera dele. Obviamente que a sociedade cobrará desse sujeito algumas atitudes, algumas explicações, mas o fator determinante nessa relação será a forma como o outro lida com a sua liberdade de escolher ou não que papel exercerá e até mesmo a forma como o exercerá. Uma vez que os papéis sociais são também socialmente construídos a liberdade do sujeito se manifesta também na forma como ele irá aderir ou não à expectativa de um determinado papel social. Os acordos silenciosos falam muito alto nesse sentido, pois sempre se espera de um sujeito que ele vá cumprir à risca o que se espera de um determinado papel. No entanto, há uma certa fluidez na execução dos papéis sociais e isso também deve ser entendido por nós com fruto dessa mesma liberdade do outro. 

As visões definidas do que se deve ou não fazer, de como um papel deve ou não ser executado acaba sendo para nós uma grande proteção e um grande validador dos nossos comportamentos que massageiam nosso narcisismo e me faz ver como "boa esposa", "bom marido", "bom amigo", "bom profissional", etc. no entanto, a liberdade do outro novamente solapa essa organização que acaba se mostrando apenas ilusória, pois a partir dessa liberdade do outro novas significações podem ser feitas me fazendo várias vezes reconstruir essa visão que eu construí para mim. Afinal, o que é ser "bom" em alguma coisa? O que é ser um "bom marido", "uma boa esposa", "um bom amigo", "um bom profissional"? Exercer todos esse papéis da forma como se espera de nós a sociedade acaba sendo o que define o sujeito como "bom em alguma coisa", mas a partir do momento que reconhecemos que a própria noção desse sujeito bom em algo não é estanque, isso nos faz abrir os olhos para as diversas outras formas possíveis de se lidar com essas relações; e isso, a meu ver, implica sempre em respeitar a liberdade do outro. 

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