segunda-feira, 21 de agosto de 2017

"E, tornando a inclinar-se, escrevia na areia." João 8:8




Jesus várias vezes alertou os seus discípulos de que as coisas nem sempre se resolvem por meio de palavras e discursos. No sermão do monte ele diz: "Não por muito falar que serão ouvidos" (Mt 6,7), afinal isso é o pensamento daqueles que não entendem o funcionamento das coisas. 
Em diversas ocasiões Jesus primava pelo exemplo, pela ação, do que propriamente pelo discurso explicativo. Se pensarmos bem, as próprias parábolas que Jesus contava tinham essa dimensão opaca da linguagem, mas tendo em mente que o foco não era o discurso a que a parábola remeteria, mas sim àquilo a que a parábola apontava, ou seja, não era no plano discursivo que a parábola faria sentido pleno, mas apenas quando aquela parábola se transformava em palavras transformadoras da vida do sujeito; e para isso era preciso que se transcendesse da linguagem da parábola para ficar com o seu sentido que era prático. Podemos citar como exemplo as parábolas do "filho pródigo", a parábola do "bom samaritano", em que todas elas apontam para uma dimensão prática em que não se trata apenas da compreensão de um discurso, mas sim da aplicabilidade por meio de uma ação transformadora da vida do sujeito. 

Em nossa sociedade pós-moderna somos sempre tentados a resolver tudo de maneira discursiva, pois esta é a maneira civilizada de tratar as coisas. Habitamos a linguagem, somos feitos dela, e por isso ela se mostra como a nossa forma privilegiada de se relacionar com o mundo. O mundo é linguagem. Isso aprendemos desde cedo. No entanto, nem sempre a linguagem deve ser verbal. A simetria entre o verbal e a linguagem nem sempre pode se dar de forma direta. Há diversas formas de dizermos as coisas e várias vezes a discursiva é a pior possível. Podemos dizer várias coisas de maneira prática por meio de ações silenciosas, por meio de gestos silenciosos, etc. Nem sempre é a palavra que nos livrará das tentações. 

Aprender que nem sempre é o discurso que nos livrará dos nossos problemas é um grande desafio para nós que habitamos a linguagem falada/discursiva. Criamos para nós que temos que ser bons argumentadores, que "provar o nosso ponto" é de fato a coisa mais importante diante de uma discussão ou diante de um problema. Tanto é assim que diante de problemas nós sempre tentamos racionalizar para compreender, circunscrever o problema por um discurso. Esta tentação discursiva diversas vezes nos conduz a problemas que nós mesmos criamos. 

Jesus era um exímio utilizador das palavras, mas também sabia a hora de falar pelo exemplo. Sempre me recordo do relato bíblico da mulher adúltera em que os acusadores trazem a mulher para que Jesus a condene e Jesus o que faz? Continua escrevendo na areia, ou seja, ele simplesmente não se pronuncia, não faz uso do discurso para defender seu ponto de vista, mas ao invés disso lança apenas um desafio: "Aquele que não tem pecado atire a primeira pedra." e volta a escrever na areia. Todo o trabalho posterior é feito pela consciência dos acusadores. Jesus demonstra ali que não era necessário levantar os porquês das atitudes dos acusadores, ou buscar os interesses íntimos que leva alguém a querer fazer um mal uso da lei para manter uma tradição, etc. Jesus não propõe um embate retórico, argumentativo com os acusadores, e reconhecer quando é o caso para tal atitude é sinal de sabedoria. Jesus neste episódio nos mostra que às vezes é a própria consciência do outro que precisa fazer o trabalho e não nós com o nosso discurso pronto, bem fundamentado, consciente, questionador, etc. 

Esta compreensão do quando falar e do quando calar é vital para nos mantermos saudáveis em nossos relacionamentos de qualquer tipo. Quer seja o relacionamento amoroso, quer seja o relacionamento entre amigos, quer seja o relacionamento entre irmãos, etc. Às vezes será o nosso exemplo, o nosso "escrever na areia" que fará com que o outro se conscientize do seu erro e não o nosso discurso, afinal, chega a ser um clichê afirmar que "ninguém muda ninguém", mas, no entanto, podemos afirmar que o nosso exemplo é capaz de mudar a forma como o outro vê a situação e isso pode ser extremamente benéfico para nós e para o outro. 

Não é pelo muito falar (verbalmente) que seremos ouvidos. Que possamos aprender a dizer pelo exemplo e sejamos como aquele que "escreve na areia" para poder dar espaço à consciência do outro que o conscientizará do que deve ou não fazer. 




sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Dai-lhes vós de comer. (Lucas 9:13)





Dai-lhes vós de comer. (Lucas 9:13)
E depois disto designou o Senhor ainda outros setenta, e mandou-os adiante da sua face, de dois em dois, a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir. (Lucas 10:1)
Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros. (Jo 13,35)

Os textos de Lucas são bem interessantes para pensarmos diversas coisas. O texto de Lucas 9, por exemplo é repleto de histórias. Desde o envio dos discípulos, passando pelo questionamento de Herodes sobre Jesus e sua fama, seguido pela multiplicação dos pães. Depois disso uma questão fortíssima de Jesus sobre a forma como os discípulos o viam, uma fala incompreendida pelos discípulos sobre a ressurreição, seguido da transfiguração, seguido de uma expulsão de um demônio e uma querela sobre “quem seria o maior no reino de Deus” e terminando com um incentivo à tolerância. Todos esses eventos descritos em apenas um capítulo, e a meu ver mostrando como que as coisas estão extremamente imbricadas nos ensinamentos do Cristo.

Daí algo interessante que podemos extrair e trazer uma reflexão interessante para nós é que Jesus tem uma preocupação muito grande em fazer traduzir as suas falas em experiências concretas, e ao mesmo tempo, traduzir as experiências concretas em falas sobre o Reino de Deus. Podemos dizer que as parábolas e as falas de Jesus seriam uma espécie de milagres em palavras, e os milagres uma espécie de parábolas em ação.

Dessa forma, ao enviar os discípulos de dois em dois, Jesus parece remeter à noção de que o Reino de Deus é sempre anunciado com o Outro e para o Outro. Não há Reino de apenas um homem só, mas ele é sempre permeado pela companhia na caminhada. O Eclesiastes já coloca essa noção para nós quando fala que “melhor serem dois do que um” (Ec. 4,9), e Jesus aponta nessa mesma direção ao enviar os discípulos acompanhados para a proclamação do Reino. Ao enviar os discípulos de dois em dois, Jesus dá a oportunidade para que os próprios discípulos exerçam entre si o amor sobre o qual ouvem diariamente. Eles precisarão conviver durante uma longa viagem juntos, e isso é um grande momento para que os laços entre eles se estreitem. A vivência que tal viagem proporcionaria valeria muito mais que inúmeras falas de Jesus sobre amor ao próximo.

Realmente a viagem empolga muito os discípulos, que retornam comentando o que experienciaram e como as pessoas os ouviam e os “espíritos se submetiam”. Tudo isso com certeza gerou muita alegria, no entanto, logo depois eles se deparam com uma demanda extremamente urgente e específica que é uma multidão de 5 mil homens demandando comida. Sem muito o que saber o que fazer eles recorrem a Jesus que lhes diz prontamente “Dei-lhes vós mesmos de comer”, ou seja, a responsabilidade de suprir as demandas do povo não poderia recair apenas sobre Jesus, mas os discípulos deveriam tomar sobre si a responsabilidade; e nesse sentido, a experiência que tiveram enquanto evangelizavam deveria tê-los preparados para se tornarem maduros.

Algo interessante que podemos ressaltar é que o outro com quem caminhamos é uma possibilidade dada por Deus de experienciar o ser humano, e ao mesmo tempo o próprio Deus. No entanto, isso pode nos fazer aproximar de Deus ou nos afastar dele. Basta lembrar que no final do capítulo 9 de Lucas os discípulos ainda estão preocupados em saber “quem é o maior no reino de Deus”. Caminhar junto deve nos levar a uma maturidade que se prolonga para além da própria caminhada, ou para além do momento em que estamos juntos e reunidos, do contrário isso acaba se tornando apenas uma reunião de forte cunho emocional, mas que não traz nada de efetivo nem para o mundo e nem para o próprio sujeito.

Antes do milagre da multiplicação dos pães há uma séria pergunta de Jesus sobre a forma como a qual os discípulos o viam. Ou seja, uma pergunta sobre a identidade de Jesus diante dos discípulos. Isso implica que a forma como vemos e entendemos Jesus muda drasticamente a forma como respondemos ou não o seu chamado. Podemos perfeitamente cair em uma espécie de ativismo cego em que apenas nos empolgamos na companhia dos irmãos e experienciamos coisas fantásticas (expulsão de demônios, curas, etc, como também os próprios discípulos na experiência da transfiguração), ou podemos refletir seriamente no que Jesus representa para nós antes de sairmos por aí buscando apenas experiências várias vezes vazias de sentido. Para que sejamos capazes de alimentar àqueles que nos pedem o que comer é preciso antes estarmos bem alimentados e bem fortalecidos no conteúdo daquilo que cremos. A fé que possibilita a alimentação dos outros deve primeiro passar por mim e ser capaz de me alimentar.  

Dar aos outros o que comer implica assumir para mim a responsabilidade e a maturidade de acolher a proposta de Jesus e me enxergar como alguém a serviço do reino. Diante da demanda prática do mundo da vida toda a questão de saber "quem é o maior no Reino dos céus" perde o seu valor. É só a partir da demanda prática do mundo da vida é que a resposta de Jesus faz sentido ao dizer que o menor deles é o maior no Reino. A lógica que Jesus propõe inverte a polarização criada pelos discípulos. O mundo da vida com suas demandas exige o trabalho conjunto, exige o cuidado de todos para com todos para que todos tenham o que comer.