segunda-feira, 5 de junho de 2017

Run, baby, Run !






Lembro de Freud quando ele dizia que o chiste, o humor se constitui como uma grande forma de defesa do inconsciente diante daquilo que lhe parece estranho. Essa talvez seja uma chave de leitura interessante para ler a dinâmica evidenciada hoje do "se nada der certo" da escola particular no RS.

A questão que paira no fundo, a meu ver, não é apenas a do menosprezo típico do capitalismo diante das profissões consideradas menores exemplificadas pelos alunos na escola, nem mesmo a questão da distância que separa estruturalmente a classe média dessas profissões. A meu ver o ponto de fundo é muito mais óbvio do que parece e é igual aquela piada do homem de quem se suspeitava que ele roubava mantimentos de uma determinada obra, e por isso, todo dia antes dele sair da obra os guardas fiscalizavam minuciosamente tudo que ele estava levando dentro do carrinho de mão e nunca encontravam nada, até que muito tempo depois descobriram que o homem estava roubando exatamente os carrinhos de mão da obra. 

Assim como a questão do carrinho a questão aqui soa muito mais óbvia do que parece. O outro com toda a sua complexidade, com toda a sua diferença, com tudo aquilo que não sou eu sempre se coloca como núcleo traumático para o sujeito de forma que a única forma encontrada para lidar com ele é por meio da sua ridicularização. O chiste se coloca como alternativa para lidar com o estranho que habita o próprio sujeito, mas que confortavelmente é visto como algo apenas externo a ele. Ou seja, o chiste é a forma "capenga" do sujeito lidar com aquilo que Lacan chamava de Real.

O que está em jogo é o medo da classe média de que aquele outro assuma o lugar do protagonismo que está totalmente dedicada a ela. Esse outro menosprezado só pode aparecer sob a forma do cômico, do satirizado, sob a forma do "erro". A partir do momento em que se coloca nesse outro uma noção de dignidade a baliza que localiza o sujeito da classe abastada se rompe e o seu mundo perde o sentido. Aqui não se coloca apenas a noção de privilégio da classe média, mas, assim como no caso do carrinho de mão, o segredo está a vista o tempo todo, ou seja, não se trata de uma relação entre classe média e classe mais baixa, mas sim um círculo vicioso que envolve a classe média em torno de si mesma. 

É bem sabido que a nossa classe média padece do grande problema da ausência de consciência de classe, ou seja, ela não é consciente da sua condição na estrutura de funcionamento do capital e por isso ela é capaz de ver o diferente como alguém "que não deu certo". Dar certo é reproduzir o mesmo modo de produção perpetuado dentro de si sem nenhum tipo de abertura para a dimensão do outro. A classe média se torna monádica, sem abertura, fechada em si mesmo de forma que o "nada" do "nada der certo" é universalizado na condição de impossibilidade. Ao mesmo tempo a forma cínica como tal evento é tratado evidencia o abismo entre a realidade do fato e o Real que ele esconde.  

Não é pouco sintomático o fato do episódio ter acontecido dentro de uma escola, afinal, a escola na maioria das vezes reproduz a infraestrutura econômica, a não ser que haja um esforço grande por parte dos professores para tentar contornar a relação intrínseca entre infra e superestrutura no processo educacional. Não é preciso dizer que na maioria das vezes esse tipo de tentativa é pouco profícuo. A escola então evidencia esse lugar onde a classe média pode esconder o seu preconceito de forma visível e ao mesmo tempo disfarçado de "lúdico", "atividade pedagógica", etc. O movimento ideológico se torna visível no episódio tipificado hoje no RS e a sua obviedade se mostra muito mais complexa do que aparenta, por isso é preciso refletir seriamente quando estas coisas acontecem, pois o que o óbvio esconde várias vezes é muito mais perigoso do que o que ele revela. 

A fuga da questão de fundo é sintomática, pois a partir do momento que as análises se concentram apenas naquilo que está à mostra, o mais óbvio escapa, o movimento ideológico por trás da questão se coloca como uma neblina que impede de ver o quadro todo. Ao mesmo tempo que a neblina é o que se faz mais presente e nos envolve é ela mesma a que impede que vejamos o que precisamos ver. A ideologia faz exatamente esse papel de esconder o objeto enquanto se mostra o tempo todo.