sexta-feira, 17 de março de 2017

Sobre a existência de milagres







"O milagre seria apenas um erro de interpretação? Uma falta de filologia?" Já nos perguntava Nietzsche em seu livro "Para além do bem e do mal", ou seja, a questão dos milagres é algo que há muito tempo se pensa sobre ela e várias vezes com certas doses de suspeita.
A primeira coisa que precisamos entender é o que geralmente se chama ou se acredita por "milagres". 

Uma definição muito comum do conceito de milagre é que o milagre seria uma intervenção divina na ordem natural das coisas fazendo com que algo aconteça de outra forma que não aquela esperada por nós. Tal definição é bastante útil em diversos casos e é usado por várias pessoas que acreditam na existência de milagres. No entanto, essa definição de milagre soa um tanto estranha se a analisarmos um pouco mais detidamente.

Primeiramente teríamos que questionar o que estaríamos chamando de "ordem natural das coisas". Hume, lá no século XVIII, no seu "Tratado sobre o entendimento humano" já levantou um grande problema para as teorias do conhecimento que ficou conhecido como problema da indução, ou seja, pelo fato de uma coisa sempre acontecer de uma determinada forma sobre a qual atribuímos uma causa específica, nada nos garante que ela continuará acontecendo em situações semelhantes mesmo se a ela fosse atribuída a mesma causa novamente. O grande problema que Hume coloca é exatamente o problema da relação entre causa e efeito que seria muito mais fruto do nosso hábito do que propriamente uma relação natural. Exemplifico para ficar mais claro. 
Suponhamos que eu aqueça a água a 100 graus celsius no nível do mar. O que esperamos que aconteça é que ela ferva, pois o ponto de ebulição da água são os 100 graus no nível do mar. No entanto, Hume nos coloca que é perfeitamente possível, e perfeitamente racional pensarmos que em um determinado dia eu possa aquecer a água a 100 graus no nível do mar e ela não ferver; ou seja, a relação entre a causa (ferver a água) e o efeito (ebulição da água) é apenas fruto do hábito e não uma relação necessária. Isso ficou conhecido como "problema da indução". 

Da mesma forma Nancy Cartwright em seu livro "Why the laws of physics lie" aponta para nós um problema muito semelhante ao problema humeano. Na proposta de Cartwright as leis da física apontariam apenas para relações ideais que nunca seriam passíveis de dizer como o mundo de fato é mas apenas estabelecer relações ideais em relação às variáveis das fórmulas. Ela toma como exemplo a própria lei da gravitação universal de Newton que diria que dois corpos seriam atraídos entre si  proporcionalmente em relação às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas. Quanto mais massa possuísse um corpo, mais ele atrairia um outro corpo com outro valor de massa e isso tudo variando de acordo com a distância entre os dois objetos. 
O que Cartwright aponta é que nunca no universo nós teríamos apenas dois corpos em relação entre si para que a lei da gravitação universal de Newton pudesse ser um reflexo do que o mundo de fato é. No espaço sempre há outros corpos envolvidos e nunca apenas dois corpos envolvidos, de forma que a situação que a lei da gravitação de Newton colocaria seria apenas ideal, mas nunca aconteceria de fato no mundo. O que se faz é ignorar, ou desconsiderar, as outras relações para que a lei possa ser aplicada. Cartwright está aqui apontando para o abismo que haveria entre a teoria física e o mundo factual tentando mostrar que as teorias físicas não descreveriam o mundo como ele é, mas apenas descreveria situações ideais criadas pela própria física. 

Esse dois exemplos servem para apontarmos um pressuposto de que no mundo natural não existiria algo que poderíamos chamar de "ordem natural", mas que a ordem do mundo é colocada nele pelo próprio homem na tentativa de explicar os diversos fenômenos naturais. A natureza não tem preocupação nenhuma em seguir tais leis, pois de fato elas não existiriam, mas seriam apenas artifícios usados pelos homens para tentar entender a natureza. A natureza pode perfeitamente agir da forma aleatória que quiser, e isso o tempo todo.

Se não há ordem natural das coisas e o milagre é defendido como uma interferência divina na ordem natural das coisas, se conclui muito facilmente que dada essas definições, não há o que chamamos de milagre. As coisas acontecem no mundo de forma aleatória e as supostas intervenções divinas seriam na realidade apenas uma aleatoriedade que desconheceríamos e por isso soaria como advinda de fora. Aqui a pergunta inicial de Nietzsche se coloca na sua forma crua, ou seja, reduzindo a questão dos milagres a uma questão filológica, ou no caso específico, hermenêutica.
Pensar dessa forma elimina diversos problemas no campo religioso, pois nos priva da questão do porquê Deus faria milagres para alguns e não para outros; ou ainda por que Deus interviria em alguns casos e não em outros. Atribuir a resposta a essas questões em um plano invisível de Deus que conhece todas as coisas de antemão é uma saída, mas traz juntamente consigo questões difíceis de resolver tais como questões quanto a livre-arbítrio do homem, responsabilidade dele diante da vida, etc.

Do ponto de vista da vida ordinária essas questões não fazem diferença nenhuma, pois a pessoa pode atribuir a qualquer fato inesperado da vida o conceito de milagre. Ele pode achar que encontrar dinheiro na rua quando ele precisava pagar uma conta é um milagre de Deus, ou acreditar que determinada pessoa que não gosto no meu serviço ter sido despedido como milagre de Deus, fruto de oração, etc. No entanto, se paramos para pensar nessas coisas percebemos que algumas dessas nossas crenças soam extremamente complicadas do ponto de vista teórico. 

Que Deus é esse que para realizar um milagre para uma pessoa precisa que outra perca seu dinheiro? Ou que Deus é esse que para realizar um milagre para uma pessoa faz com que a outra perca o emprego? Deus teria "preferidos" para quem faria milagres em nome da desgraça de outros? E o que dizer das inúmeras pessoas que pedem constantemente por milagres e nunca são atendidas em suas orações? Será que Deus não faria os milagres para essas pessoas? Ou será que a ideia de um plano divino para todos implicaria que para algumas pessoas os milagres não deveriam acontecer para que o plano específico de Deus possa se cumprir na vida delas? Essa visão de Deus traz apenas um Deus sádico que nunca poderia nos salvar e ainda ignora as condições materiais de existência que determinam várias coisas na vida das pessoas.
Percebemos que acreditar em milagres dessa forma como definimos acima só pode trazer juntamente consigo um Deus sádico intervencionista que teria preferidos para interferir em alguns casos e não em outros de acordo com um plano pré-estabelecido por Ele mesmo. 

Deve ter ficado claro até agora que defendo aqui que aquilo que chamamos milagre é uma tentativa nossa de delimitar tanto o que entendemos por ordem do mundo e ao mesmo tempo tentar compreender o que acontece conosco por um viés narcísico em que Deus seria capaz de se importar mais comigo do que com as outras pessoas transformando novamente Deus em um "Deus à mão" que está sempre pronto a me atender nos meus desejos e intenções.

Criar para nós uma explicação pelo viés do milagre não é sem sentido, mas muito pelo contrário traz consigo um clamor pelo sentido das coisas. Diversas vezes nós que viemos de situações vulneráveis, difíceis e conseguimos sobreviver a elas afirmamos que isso só pode ser fruto de um milagre de alguém que usou de misericórdia para conosco e nos permitiu sair de situação tão penosa que passávamos. Podemos pensar que tal misericórdia se estende a todas as pessoas, mas as nossas construções sociais fazem com que tais milagres nunca aconteçam para algumas delas. Isso tudo não aponta para a existência do milagre, mas aponta para a nossa tentativa de dar sentido às coisas do mundo e às nossas situações. 

Podemos considerar um milagre o simples fato de estarmos vivos, respirando, termos nascido em meio a tanta aleatoriedade da vida em uma galáxia tão imensa e cheia de tantas possibilidades, mas para considerarmos o milagre dessa forma não precisamos acreditar em um Deus sádico. Dessa forma o milagre se torna a própria vida que em meio a aleatoriedade resolve acontecer. A noção de milagre aponta, portanto, para a nossa pequenez diante do mundo, diante do divino; aponta para a nossa total não compreensão das coisas e como salto no escuro é capaz de apostar no sentido das coisas. Dessa forma a noção de milagre perde o seu caráter narcísico e se coloca disponível a todos os viventes. 
O que cabe a nós é mudar as nossas condições materiais de existência para que a vida abundante alcance a todos e não apenas a alguns. Tiramos do Deus sádico a função de conceber milagres a uns e não a outros e nos tornamos responsáveis tanto pelas nossas escolhas quanto pelas consequências advindas delas sem precisar para isso atribuir tal escolha à "vontade de Deus".

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