quinta-feira, 23 de março de 2017

Teologia da violência - Uma busca necessária para tempos sombrios








Os tempos atuais não são dos melhores no Brasil. Os constantes desmantelamentos dos direitos, as perdas constantes de conquistas seculares dos trabalhadores e tudo isso regado com extremo cinismo por parte do congresso e por parte do governo ilegítimo que usurpou a presidência da frágil república brasileira.
Na minha opinião, depois das inúmeras tentativas de diálogo sem sentido, depois das inúmeras manifestações pacíficas que tomaram conta das ruas de todo o Brasil , depois de inúmeras análises feitas por sociólogos, filósofos, cientistas políticos todas elas sem nenhum efeito, a única forma viável de se conquistar, ou melhor não perder mais direitos e reconquistar os já perdidos será a luta armada encabeçada pelos trabalhadores que partirão novamente para as ruas, mas agora não mais pacificamente, mas dispostos a enfrentar diretamente um poder que não mais os representam. 

A democracia representacional, pelo menos no Brasil, tem se mostrado extremamente frágil e muito pouco representativa dos interesses da maioria dos trabalhadores brasileiros. O que se vê é um congresso cada vez mais se colocando contra o povo votando diversas medidas que prejudicam de forma acintosa a dignidade dos trabalhadores. Os exemplos mais recentes são a reforma da previdência e recentemente a lei da terceirização que precariza ainda mais as relações de trabalho e literalmente "rasga" a CLT em nome da agenda neoliberal. 

Diante de um quadro de completa desesperança em que a única coisa que se vê é a perda constante de direitos, apenas um último grito de esperança por meio da ação efetiva se coloca como opção para os trabalhadores em tempos tão hostis. No entanto, é óbvio que a classe trabalhadora não se coloca como uma classe homogênea. Os trabalhadores são muitos, são vários, são diversos e uma pauta geral que englobaria a todos eles seria extremamente difícil de ser adquirida, no entanto, penso que o momento não seja o da polarização estúpida que se vê incessantemente nas redes sociais, mas um momento de união dos trabalhadores em nome da luta que favorecerá a todos. Desde o trabalhador mais qualificado ao menos qualificado. A consciência de classe (da qual tanto falava Marx) se faz cada vez mais necessária em nossos dias. Afinal, é somente a partir dela que uma luta organizada e de peso pode surgir. Enquanto essa mobilização não se der de forma mais organizada os direitos dos trabalhadores continuarão sendo tomados. 

Dentro da ala cristã há sempre uma ressalva em se apelar para a violência, pois guarda-se ainda a ideia de que o "povo de Deus" deve se manter sempre pacífico, lutando apenas em esferas metafísicas, ou quando muito lutando de forma a evitar a violência em todas as suas esferas. No entanto essa posição tipicamente "cristã" se esquece que esse caráter agressivo faz parte da própria natureza humana e várias vezes ela será extravasada de diversas formas. Negar a agressividade do homem é negar a ele uma parte constitutiva de sua natureza. Dessa forma deve-se levar em conta a agressividade humana na hora de pensar a forma que esse sujeito deveria agir. 

Há um exemplo bíblico muito conhecido da passagem em que Jesus expulsa os cambistas do templo de Jerusalém os acusando de ter tornado a casa de Deus em um covil de salteadores. (Mt 21,12-13 e Jo 2,13-17) Algo que salta aos olhos nessa passagem é o fato de que Jesus faz um grande uso da violência em nome de uma causa que, em sua concepção, merecia que a violência fosse aplicada. Algo que esse episódio nos mostra é que às vezes o recurso à violência é legítimo quando o que está em jogo é um motivo maior que esteja sendo ameaçado. No exemplo de Jesus o "zelo da casa de Deus o consumia"( Sl 69,10) como relata João, de forma que em nome desse zelo a violência se mostrou legítima. Ao expulsar os vendedores de pombas, os cambistas do templo a violência que estava embutida no ato trazia consigo um grito pela restauração do sentido do templo no contexto judaico. Não foi uma ação destituída de sentido, mas um gesto de luta em favor dos que estavam sendo prejudicados pelo comércio exploratório que se fazia ali. 

A violência demonstrada por Jesus vai totalmente contra esse ideal pacifista adotado pelos cristãos em todas as situações. O que Jesus mostra é que em alguns momentos a violência é sim uma arma que deve ser usada, e no caso do texto em questão, ela foi usada quando a dignidade do outro estava em risco. Os cambistas no templo cobravam um valor absurdo para a compra dos animais que eram exigidos para os que iam sacrificar no templo e com isso exploravam os mais humildes em nome do "cumprimento da lei" por parte do pobre. Os vendedores do templo feriam a dignidade do pobre que iria ofertar o imputando um comércio em um lugar em que se deveria existir a misericórdia. Jesus indignado com tal situação se pôs a agir por meio da violência, pois apenas ela naquele momento seria capaz de resolver a situação. Jesus não tentou dialogar com os cambistas, não tentou negociar com eles uma forma para que eles diminuíssem o preço dos produtos, ou seja, não adotou uma postura pacífica e dialogal naquele momento, mas passou para o uso da violência derrubando as barracas e expulsando os cambistas. Esse ato de Jesus estranhou enormemente os líderes do templo que se perguntavam com que autoridade ele fazia aquilo, e Jesus prontamente respondeu em forma de parábolas afirmando que ele seria aquele que destruiria o templo e em três dias o reconstruiria, já apontando para a sua morte e ressurreição que aconteceria em breve e que refaria a estrutura do templo. 

A busca por uma teologia da violência se mostra talvez mais que necessária em nossa época no Brasil. Nós, cristãos, somos chamados a lutar contra todo aquele que visa ferir a dignidade humana, visa privar o homem da sua humanidade, visa diminuí-lo da sua condição de liberdade, e várias vezes isso deverá ser feito por meio da violência. O cristão não deve temer a violência quando a causa assim o exigir. Como dito acima, a agressividade é uma dimensão natural do ser humano e não pode ser esquecida em nome de uma postura que nada diz e nada faz enquanto tudo se perde no caminho. 
Jesus se coloca novamente como um paradigma de que às vezes a violência se faz necessária para que o reino de Deus que é justiça, paz, misericórdia, dignidade se faça presente entre nós. A consciência de classe da qual Marx fala se alia aqui à consciência cristã que se conscientiza de que a violência é sim um caminho legítimo (talvez o último a ser utilizado) para que o homem se mantenha humano.

Jesus no templo tipifica o homem contra a estrutura social já estabelecida, tipifica a luta para que a dignidade humana seja restabelecida. Ali Jesus mostra que nenhuma instituição está acima da dignidade humana, nenhuma ordem social se coloca acima do valor do homem em sua integridade e que em nome desse valor do homem a instituição deve ser destruída, se preciso for, por meio da violência. A proposta de Jesus no nosso exemplo está longe do pacifismo, está longe da proposta dialogal, pois naquele momento isso não é mais possível. A partir do momento que o status quo se coloca de forma inexorável contra a humanidade do homem, contra aquilo que o compõe enquanto humano, tal status quo deve ser combatido. A crítica de Jesus é radical, a proposta de Jesus neste episódio é o uso da violência e ele a usa sem medo, o que nos indica que também nós devemos ser capazes de utilizá-la quando a situação assim exigir. 

Que haja luta sempre. E que não nos esquivemos do uso da violência quando ela se fizer necessária. No meu modo de ver, o momento exige isso de nós, os trabalhadores. 

sexta-feira, 17 de março de 2017

Sobre a existência de milagres







"O milagre seria apenas um erro de interpretação? Uma falta de filologia?" Já nos perguntava Nietzsche em seu livro "Para além do bem e do mal", ou seja, a questão dos milagres é algo que há muito tempo se pensa sobre ela e várias vezes com certas doses de suspeita.
A primeira coisa que precisamos entender é o que geralmente se chama ou se acredita por "milagres". 

Uma definição muito comum do conceito de milagre é que o milagre seria uma intervenção divina na ordem natural das coisas fazendo com que algo aconteça de outra forma que não aquela esperada por nós. Tal definição é bastante útil em diversos casos e é usado por várias pessoas que acreditam na existência de milagres. No entanto, essa definição de milagre soa um tanto estranha se a analisarmos um pouco mais detidamente.

Primeiramente teríamos que questionar o que estaríamos chamando de "ordem natural das coisas". Hume, lá no século XVIII, no seu "Tratado sobre o entendimento humano" já levantou um grande problema para as teorias do conhecimento que ficou conhecido como problema da indução, ou seja, pelo fato de uma coisa sempre acontecer de uma determinada forma sobre a qual atribuímos uma causa específica, nada nos garante que ela continuará acontecendo em situações semelhantes mesmo se a ela fosse atribuída a mesma causa novamente. O grande problema que Hume coloca é exatamente o problema da relação entre causa e efeito que seria muito mais fruto do nosso hábito do que propriamente uma relação natural. Exemplifico para ficar mais claro. 
Suponhamos que eu aqueça a água a 100 graus celsius no nível do mar. O que esperamos que aconteça é que ela ferva, pois o ponto de ebulição da água são os 100 graus no nível do mar. No entanto, Hume nos coloca que é perfeitamente possível, e perfeitamente racional pensarmos que em um determinado dia eu possa aquecer a água a 100 graus no nível do mar e ela não ferver; ou seja, a relação entre a causa (ferver a água) e o efeito (ebulição da água) é apenas fruto do hábito e não uma relação necessária. Isso ficou conhecido como "problema da indução". 

Da mesma forma Nancy Cartwright em seu livro "Why the laws of physics lie" aponta para nós um problema muito semelhante ao problema humeano. Na proposta de Cartwright as leis da física apontariam apenas para relações ideais que nunca seriam passíveis de dizer como o mundo de fato é mas apenas estabelecer relações ideais em relação às variáveis das fórmulas. Ela toma como exemplo a própria lei da gravitação universal de Newton que diria que dois corpos seriam atraídos entre si  proporcionalmente em relação às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas. Quanto mais massa possuísse um corpo, mais ele atrairia um outro corpo com outro valor de massa e isso tudo variando de acordo com a distância entre os dois objetos. 
O que Cartwright aponta é que nunca no universo nós teríamos apenas dois corpos em relação entre si para que a lei da gravitação universal de Newton pudesse ser um reflexo do que o mundo de fato é. No espaço sempre há outros corpos envolvidos e nunca apenas dois corpos envolvidos, de forma que a situação que a lei da gravitação de Newton colocaria seria apenas ideal, mas nunca aconteceria de fato no mundo. O que se faz é ignorar, ou desconsiderar, as outras relações para que a lei possa ser aplicada. Cartwright está aqui apontando para o abismo que haveria entre a teoria física e o mundo factual tentando mostrar que as teorias físicas não descreveriam o mundo como ele é, mas apenas descreveria situações ideais criadas pela própria física. 

Esse dois exemplos servem para apontarmos um pressuposto de que no mundo natural não existiria algo que poderíamos chamar de "ordem natural", mas que a ordem do mundo é colocada nele pelo próprio homem na tentativa de explicar os diversos fenômenos naturais. A natureza não tem preocupação nenhuma em seguir tais leis, pois de fato elas não existiriam, mas seriam apenas artifícios usados pelos homens para tentar entender a natureza. A natureza pode perfeitamente agir da forma aleatória que quiser, e isso o tempo todo.

Se não há ordem natural das coisas e o milagre é defendido como uma interferência divina na ordem natural das coisas, se conclui muito facilmente que dada essas definições, não há o que chamamos de milagre. As coisas acontecem no mundo de forma aleatória e as supostas intervenções divinas seriam na realidade apenas uma aleatoriedade que desconheceríamos e por isso soaria como advinda de fora. Aqui a pergunta inicial de Nietzsche se coloca na sua forma crua, ou seja, reduzindo a questão dos milagres a uma questão filológica, ou no caso específico, hermenêutica.
Pensar dessa forma elimina diversos problemas no campo religioso, pois nos priva da questão do porquê Deus faria milagres para alguns e não para outros; ou ainda por que Deus interviria em alguns casos e não em outros. Atribuir a resposta a essas questões em um plano invisível de Deus que conhece todas as coisas de antemão é uma saída, mas traz juntamente consigo questões difíceis de resolver tais como questões quanto a livre-arbítrio do homem, responsabilidade dele diante da vida, etc.

Do ponto de vista da vida ordinária essas questões não fazem diferença nenhuma, pois a pessoa pode atribuir a qualquer fato inesperado da vida o conceito de milagre. Ele pode achar que encontrar dinheiro na rua quando ele precisava pagar uma conta é um milagre de Deus, ou acreditar que determinada pessoa que não gosto no meu serviço ter sido despedido como milagre de Deus, fruto de oração, etc. No entanto, se paramos para pensar nessas coisas percebemos que algumas dessas nossas crenças soam extremamente complicadas do ponto de vista teórico. 

Que Deus é esse que para realizar um milagre para uma pessoa precisa que outra perca seu dinheiro? Ou que Deus é esse que para realizar um milagre para uma pessoa faz com que a outra perca o emprego? Deus teria "preferidos" para quem faria milagres em nome da desgraça de outros? E o que dizer das inúmeras pessoas que pedem constantemente por milagres e nunca são atendidas em suas orações? Será que Deus não faria os milagres para essas pessoas? Ou será que a ideia de um plano divino para todos implicaria que para algumas pessoas os milagres não deveriam acontecer para que o plano específico de Deus possa se cumprir na vida delas? Essa visão de Deus traz apenas um Deus sádico que nunca poderia nos salvar e ainda ignora as condições materiais de existência que determinam várias coisas na vida das pessoas.
Percebemos que acreditar em milagres dessa forma como definimos acima só pode trazer juntamente consigo um Deus sádico intervencionista que teria preferidos para interferir em alguns casos e não em outros de acordo com um plano pré-estabelecido por Ele mesmo. 

Deve ter ficado claro até agora que defendo aqui que aquilo que chamamos milagre é uma tentativa nossa de delimitar tanto o que entendemos por ordem do mundo e ao mesmo tempo tentar compreender o que acontece conosco por um viés narcísico em que Deus seria capaz de se importar mais comigo do que com as outras pessoas transformando novamente Deus em um "Deus à mão" que está sempre pronto a me atender nos meus desejos e intenções.

Criar para nós uma explicação pelo viés do milagre não é sem sentido, mas muito pelo contrário traz consigo um clamor pelo sentido das coisas. Diversas vezes nós que viemos de situações vulneráveis, difíceis e conseguimos sobreviver a elas afirmamos que isso só pode ser fruto de um milagre de alguém que usou de misericórdia para conosco e nos permitiu sair de situação tão penosa que passávamos. Podemos pensar que tal misericórdia se estende a todas as pessoas, mas as nossas construções sociais fazem com que tais milagres nunca aconteçam para algumas delas. Isso tudo não aponta para a existência do milagre, mas aponta para a nossa tentativa de dar sentido às coisas do mundo e às nossas situações. 

Podemos considerar um milagre o simples fato de estarmos vivos, respirando, termos nascido em meio a tanta aleatoriedade da vida em uma galáxia tão imensa e cheia de tantas possibilidades, mas para considerarmos o milagre dessa forma não precisamos acreditar em um Deus sádico. Dessa forma o milagre se torna a própria vida que em meio a aleatoriedade resolve acontecer. A noção de milagre aponta, portanto, para a nossa pequenez diante do mundo, diante do divino; aponta para a nossa total não compreensão das coisas e como salto no escuro é capaz de apostar no sentido das coisas. Dessa forma a noção de milagre perde o seu caráter narcísico e se coloca disponível a todos os viventes. 
O que cabe a nós é mudar as nossas condições materiais de existência para que a vida abundante alcance a todos e não apenas a alguns. Tiramos do Deus sádico a função de conceber milagres a uns e não a outros e nos tornamos responsáveis tanto pelas nossas escolhas quanto pelas consequências advindas delas sem precisar para isso atribuir tal escolha à "vontade de Deus".

domingo, 12 de março de 2017

A bênção de Deus sobre nós.







Fabiano, você acredita que Deus te abençoou quando você foi comprar seu novo apartamento?
Fabiano, você acredita que Deus abençoa as pessoas?

Essas duas questões foram um tema de um debate curiosíssimo que tive hoje na casa de Mams durante o fim da noite e início da tarde. 
A minha resposta à primeira pergunta foi negativa, enquanto a resposta à segunda questão é positiva. O que possibilita que tais respostas sejam diferentes é a nossa concepção sobre Deus. 
Diversas vezes nesse blog já mencionei a forma como compreendo Deus. e isso sempre é alvo de contínuas perguntas dirigidas a mim. 

Ao responder negativamente à primeira pergunta fui compreendido como alguém que se mostrava extremamente auto-suficiente que teria conseguido tudo com a força do meu braço sem precisar da ajuda de ninguém. Essa impressão, no entanto, está longe da forma com o que a resposta negativa à pergunta quer dizer. Quando respondo negativamente à primeira pergunta, quero dizer apenas que não acredito que Deus esteja preocupado com os mínimos detalhes da vida das pessoas. Pensar em um Deus assim nos traz muito mais problemas que soluções, pois transforma Deus em um ser muito "à mão", ou seja, um Deus do qual posso me valer na hora que eu quiser, do jeito que eu quiser. Um Deus que se preocupasse com os mínimos detalhes da minha vida, ou que definisse planos para a minha vida já seria um Deus que de alguma forma estaria cerceando a minha liberdade e a minha responsabilidade diante do mundo. Esse Deus pensado dessa forma seria a completa antítese da proposta do Deus anunciado por Jesus que, longe de ser um Deus infantilizado, é amor que se estende a todos e a tudo. Ao mesmo tempo, ao responder negativamente à primeira pergunta não implica que me considero alguém que seja o único responsável por adquirir às coisas. Basta um olhar rápido para toda a natureza para percebermos a nossa pequenez, a nossa humilde condição, ou apenas perceber que somos como "uma neblina que passa". 

Da mesma forma que posso me compreender tão pequeno diante da Natureza, posso me colocar como extremamente pequeno dependendo da relação que estabeleço com a noção de Deus. A visão de um Deus cristão nunca propõe a anulação do sujeito, ou ainda a transformação do sujeito em um nada para que Deus possa ser tudo. A proposta do Cristo traz em si uma visão sobre Deus que nos trata não como "vermezinhos de Jacó", mas como "amigos", que implica uma relação madura com Deus e não infantilizada. Ao invés de reduzir o sujeito à nada, a proposta do Cristo eleva o sujeito à condição de se relacionar com Deus, ou seja, conserva a dignidade do homem. 
Reconhecer a pequenez diante do mundo que nos rodeia, ou até mesmo nos considerar pequenos diante de Deus depende da forma como concebemos Deus no mundo. O ser humano nunca foi, nem nunca será auto-suficiente. Ele sempre depende de um Outro que o acolha e lhe traga um mundo no qual possa habitar. 

É nesse sentido que posso responder afirmativamente à segunda pergunta, ou seja, acredito que Deus abençoa as pessoas, mas não em casos especialíssimos, mas a benção de Deus que está sobre todos é apenas aquela que nos permite viver, nos permite respirar, e nos permite experienciar as belezas do mundo que nos faz reconhecer a nossa total pequenez e ignorância diante de várias coisas que nos rodeiam, que faz chover sobre justos e injustos, como traz o sol sobre justos e injustos. Desde a mais ínfima bactéria até as galáxias mais distantes de nós apontam para a nossa pequenez. Daí talvez possamos entender a admoestação que o Deus de Israel dá ao povo pouco antes de entrarem na Terra prometida na história do Êxodo:

"Não aconteça que, havendo comido e estando plenamente saciado, havendo construído casas confortáveis e habitando nelas, havendo-se multiplicado teu gado e o número de tuas ovelhas tendo aumentado, e também se multiplicado tua prata e teu ouro, e tudo o que tiveres, que teu coração se ensoberbeça e venhas a te esquecer do Eterno, o teu Deus, que te fez sair livre da terra do Egito, da casa da escravidão; que te conduziu através daquele imenso e perigoso deserto, cheio de serpentes e escorpiões mortais; e que numa terra seca e hostil, tirou água da rocha para te saciar a sede; que no deserto te sustentou com maná que teus antepassados não conheciam; para te humilhar, e para te provar, com o objetivo de proporcionar o melhor para ti no futuro. Portanto, não digas no teu íntimo: ‘A minha força e o poder do meu braço me conquistaram estes bens e riquezas’. Antes, te recordarás de Yahweh teu Deus, porque é Ele o que te dá força e capacidade para gerar riqueza, confirmando a Aliança que jurou a teus pais, conforme hoje se constata claramente. " (Dt 8, 12-18)

Ou seja, compreender a nossa pequenez diante do mundo, diante da natureza ou diante de Deus faz parte da nossa compreensão do mundo e toda a natureza aponta para isso. O autor do Deuteronômio traz a nossa atenção exatamente para esse ponto, ou seja, o fato de que devemos sempre lembrar de Deus, daquilo que é superior a nós, e perceber que somos muito pequenos diante das coisas. No caso do texto citado ainda há o fato de lembrar que foi Yahweh que deu ao seu povo todas as coisas. O texto nos aponta, portanto, para essa relação que podemos criar para com Deus, sempre lembrando que a sua bênção está sobre todos proporcionando a possibilidade da vida. Mas a partir do momento que transferimos essa bênção de Deus que nos capacita e transformamos esse Deus em algo apenas "à mão", abrimos mão da nossa responsabilidade diante das coisas. 

E o que quer dizer quando atribuímos à Deus bênçãos sobre as nossas vidas? O que queremos com isso? Queremos apenas atribuir um sentido às coisas transitórias que acontecem no mundo e em nossas vidas. Nesse sentido posso ler o mundo como um lugar em que a bênção de Deus está sempre diante de nós e nos permite fazer todas as coisas. Se de fato a coisa é assim ou não é assim isso tudo depende da aposta no sentido ou não-sentido das coisas no mundo. Quando digo: "Isso me aconteceu e é bênção de Deus", o que quero dizer é que resolvo ler o mundo como um lugar em que Deus está constantemente interferindo nele para fazer as coisas de um jeito específico. E isso não é pouca coisa. O que não devemos fazer é querer que Deus se responsabilize por coisas que são decisões nossas, mas podemos atribuir a ele uma bênção diante da nossa escolha, mas isso dirá apenas que há uma crença envolvida e não que de fato houve uma bênção em casos especialíssimos.  

Nesse sentido, acredito que fica claro porque a resposta para a primeira questão seja negativa (pois isso implicaria na concepção de um Deus "à mão"), e a resposta seja positiva à segunda questão (pois a nossa pequenez diante do mundo nos faz tentar dar um sentido às coisas, que podemos  atribuir à Deus).

quinta-feira, 2 de março de 2017

A Religião light ou Religião "à la carte"








Na relação do homem com a religião na contemporaneidade acontece o que aqui chamarei de uma espiritualização instrumental da vida. Um movimento crescente de pessoas que nas redes sociais e às vezes até mesmo na vida diária adotam agora "novas posturas", "novas formas de vida", que agora afirmam se dedicar à yoga, alimentação saudável, cultura da paz, práticas exotéricas, mapas astrais, lemas budistas, práticas milenares de meditação, etc.

Esse fato mesmo parecendo ser recente é algo que já acontece há algum tempo em nossa sociedade totalmente permeada pelo individualismo e pela ausência de referenciais. Esse novo tipo de "espiritualidade" é o que chamamos de  "religião light", ou "religião a la carte", ou até mesmo "religião portátil". Todos esses os conceitos trazem em si a noção de que a apropriação que um indivíduo faz de preceitos religiosos é, diversas vezes,  meramente instrumental e aliada às demandas do próprio capitalismo. Não é raro vermos pessoas que afirmam que assim que começaram a meditar se sentem mais dispostas para o trabalho, afirmar que rendem mais em suas atividades, etc. A prática espiritualizada servindo em grande parte para a exacerbação da produção. 

A religião light se evidencia principalmente entre os mais jovens que na ânsia de encontrar algum sentido diante das diversas sensações que o mundo oferece começam a ver em práticas religiosas uma possível saída para o estado de anomia. Assim, o sujeito encara de forma muito tranquila o fato de seguir preceitos budistas e fazer coaching para produzir melhor. Ou então ele se sente muito bem praticando yoga, mas trabalhando freneticamente porque tem no acúmulo financeiro um objetivo inegociável de vida. Para esse sujeito é muito tranquilo participar de festas consumistas em que a dinâmica efêmera da vida está toda estampada contando que a proposta apareça com o nome de "Krishna" ou alguma outra entidade oriental. Esse sujeito da religião light é ele mesmo um indivíduo light, descomprometido com tudo, que tem na ausência de conflitos a sua razão de viver.

A religião à la carte é exatamente esse movimento de se servir de preceitos religiosos em uma espécie de self service onto-metafísico em que o "cliente" (afinal a sua apropriação na maior parte das vezes é para se aliar à dinâmica do capital) é livre para se apropriar do que achar mais interessante para a sua vida. Com o seu prato ele se serve da mística cristã, da sabedoria budista, dos tambores africanos, da serenidade das religiões orientais, da yoga, da meditação e monta o seu prato pronto para ser devorado durante o horário de almoço da sua vida em busca de dinheiro. Essa relação do indivíduo com a religião marca uma tendência contemporânea no mundo da ausência de referenciais. A sociedade líquida (Como Bauman gostava de chamar) traz consigo essa liquidez nas relações que o homem estabelece com a religião. A religião light é uma religião descomprometida, sem afeto, sem amarras metafísicas, sem compromissos ontológicos; ela se torna simplesmente um instrumento para o sujeito se sentir melhor. E esse "sentir melhor" pode ser simplesmente um "comer comida orgânica", "meditar algumas vezes por semana" e se sentir "transcendendo a efemeridade da vida" por alguns minutos em silêncio.

A religião light ou "à la carte" é ao mesmo tempo uma "religião portátil", ou seja, aquela que o indivíduo tem "sempre à mão" para pegar o que precisar, quando precisar, para a tarefa que precisar. Se em um determinado momento ele precisa justificar uma determinada prática que pode ter alguma pega com algum preceito budista, o sujeito simplesmente se apropria daquilo e utiliza sem precisar conceituar ou colocar tal preceito dentro do arcabouço teórico a que tal conceito pertence. Ele é simplesmente utilizado pelo sujeito segundo seu bel prazer e o mesmo acontecendo com os diversos rituais das diversas religiões.

As religiões orientais são talvez as que mais são apropriadas pelo ocidente devida a sua forma bastante diferente de ver a relação do homem com o mundo. Daí muito facilmente vermos os mais diversos praticantes de yoga, meditação, práticas alimentares que simplesmente estão fazendo estas determinadas coisas para otimizar a sua vida financeira, ou sua vida profissional, enfim, para render melhor na dinâmica do capital. Isso marca uma deturpação curiosíssima da função consagrada da religião que em sua dinâmica está totalmente alheia à noção de "produção". A religião light permite ao sujeito se sentir melhor, mas mantendo a mesma dinâmica neurótica que o aprisiona dentro da estrutura do capitalismo. Nesse sentido podemos dizer sem nenhuma dúvida que a religião light é o fenômeno que marca a apropriação da religião pelo capital.

A religião, de doadora de sentido para a existência, se transforma em um meio para otimizar a produção do sujeito na dinâmica capitalista; e quando ela se torna isso, há muito tempo já perdeu o seu sentido de ser.