quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O que dará o homem em troca da sua alma? (Mc 8,37) A "morte lenta" do funcionário padrão







A crítica central de Marx ao capitalismo é que o capitalismo desumaniza o homem. O transforma em um mero animal, em um mero "meio" para que se produza mais capital. O homem nesse tipo de sistema não passa de uma peça a ser substituída caso não cumpra a sua função, ele se torna completamente descartável, embora a ideologia que domine seja a de que esse ser humano seria indispensável para o funcionamento da máquina. A esse indivíduo sugado e mutilado constantemente pelo funcionamento institucional restaria apenas a morte lenta transfigurada em "sucesso profissional". 

Ao funcionário padrão resta apenas isso: A cruel dinâmica entre fazer algo com sentido ou não. E por inúmeros motivos se escolhe geralmente o sem sentido enquanto sacrifica todo o resto. 

E assim vai-se morrendo aos poucos pelo que pouco importa. 
Esgota-se lentamente.
Diariamente.
Esgota-se por motivos supérfluos como se toda a vida dependesse daquele detalhe pífio. 
E não adiantam os discursos, não adiantam as admoestações, não adianta nem mesmo o próprio corpo dar sinal de que está demais. 
É como se o clamor por aquilo que o mata diariamente  fosse sempre o mais importante. 

Se o medo não dominasse a pobre alma, talvez haveria a coragem para o basta.
Enquanto isso vai-se embora a vida, a alegria, o casamento, a casa, os amigos, a família. 
Tudo relegado ao segundo plano; tudo transformado em um depois a ser feito que nunca encontra tempo. 
Vai-se morrendo lentamente, vendo a vida passar diante dos seus olhos. 
Vida cada vez com menos sentido, cada vez com menos brilho, cada vez necessitando mais subterfúgios para ser simplesmente suportada, mas nunca mais vivida plenamente.

Qual a última vez que ele foi pleno em algo?
Quando foi a última vez que sorriu sem me preocupar com nada?
Que sentou no sofá e descansou?

Enquanto assimila como dele o discurso empresarial, deixa de lado o que são os seus próprios valores. Há uma dissimetria abismal que o confronta entre o que ele acredita e no que ele se empenha. Dissimetria essa inconciliável, mas mesmo assim continua se empenhando pelo que é vão. Não há mais ânimo para nada. A alma (aquilo que anima) se foi. Restou apenas o invólucro; um corpo sem nada que o motive, nada que o impulsione; apenas mais um dia, mais um trabalho, mais uma rotina.

O que precisa acontecer para que se pare? 
Se nem o colapso do  corpo, nem a angústia constante, nem as dores, nem a ausência de alegria, nem o definhar constante da vida, nem a perda do tempo, nem a perda do contato com a família, amigos, nem a má alimentação são capazes de  fazê-lo parar, o que será? 

Se pelo menos essa morte fosse uma morte digna, se fosse por algo que se acredita, se fosse por algo pelo qual valesse a pena morrer, se pelo menos fosse por isso tal definhar, talvez encontrasse um sentido nisso tudo e uma espécie de "sentimento nobre" o invadiria e serviria para organizar o colapso. 
Mas nem isso acontece. Não há nada de digno nessa morte lenta. Nada que valha a pena nela. É uma morte vã, em nome de algo que simplesmente não se importa com ele. Em nome de algo que o substituirá no mesmo momento em que se demonstrar que já não é capaz. Nesse medo da substituição, nesse medo de perder o menos importante vai se perdendo o que mais importa para ele.

A perversão é total. Perverte-se até o próprio medo. O medo que deveria impelir a ações diferentes deveria ser o medo de perder o que mais importa, mas é como se tentasse se convencer de que para o mais importante fosse necessário apenas o básico, enquanto para o menos importante fosse necessária a própria alma. Inversão completa de valores promovida pelo capitalismo. Nisso o medo persiste e vai ganhando contornos cada vez mais angustiantes. A angústia agora vem de fora, mas também vem de dentro. A pressão é externa, mas é também interna. O funcionário padrão sofre de qualquer jeito. 

Ser de acordo com o padrão em um sistema em que o próprio padrão é o da desumanização do indivíduo é ir contra si mesmo, e dessa forma não resta nada além da precarização da vida, a angústia sem fim, a morte sem sentido, a perda da alma.

"O que o homem poderia dar em troca da sua alma?" (Mc 8,37)





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