segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Jesus e a Família








"É aqui que a posição de Jesus ante a família revela-se surpreendente e até mesmo desconcertante. Acostumados como estamos a considerar a família uma instituição intocável, muitos textos dos Evangelhos chocam-se de forma estridente com nossa sensibilidade. Perdemos de vista que, para Jesus, a família não é, como o é muitas vezes para nós, o espaço mais sacrossanto, nem um espaço a defender a todo custo, como obrigação absoluta e sagrada.

Jesus nos revela uma nova ordem de relações humanas, na qual os "laços de carne" tornam-se superados (Mc 3,31-35 par. Mt 10,37; Lc 14,26). Fica inaugurado um novo modo de filiação, que desloca a ordem biológica. Uma nova comunidade, a do reino, adquire um lugar central, e os laços do espírito se impõem aos laços da carne. Disso resulta que, na medida em que os laços da carne sejam informados e estruturados pelos laços do espírito, a família terá lugar no reino de Deus. Mas, na medida em que estes laços da carne busquem manter sua primazia ou entrem em contradição com os do espírito, a família vai ser desqualificada.

Os laços familiares, por um lado, serão considerados por Jesus modelo e referência reveladora do que deve ser a nova família comunitária. Quase todas as relações familiares e humanas implicadas por essas situações são assumidas por Jesus como situações exemplares que servem para iluminar o significado da mensagem (assim, por exemplo, Mt 22,2-3; 24,19; Jo 16,21; Lc 16,27; Mc 10,19; Mt 7,9 etc.)

Mas, por outro lado, os laços familiares são radicalmente questionados quando se opõem aos valores que devem informar a nova comunidade. Uma vez que a família representa e transmite os valores sociais dominantes da cultura, o conflito entre os vínculos familiares e os valores do reino está declaradamente aberto. Na medida em que a família representa e fomenta os valores sociais do muito possuir, de ascender ao máximo e de brilhar acima de todos, os laços familiares implicam amarras que o seguidor de Jesus é convocado a romper.

Por isso, a mensagem radical do Evangelho supõe um nítido enfrentamento com o que a família pode ser e representar. De alguma maneira, o conflito é inevitável. Ele o foi para o próprio Jesus, cujos parentes achavam que ele havia enlouquecido porque não buscava o triunfo nos seus locais apropriados, porque vivia não para si próprio, mas numa atitude de serviço e entrega total às pessoas, porque em sua terra natal, entre parentes e amigos da casa, proclamou a impossibilidade de ser profeta (Mc 3,21; 6,1-6; Mt 13,55-58; Lc 4,16-20). Por tudo isso, Jesus afirmou pública e abertamente a substituição de sua família pelas relações comunitárias. Sua mãe e seus irmãos são os que, como ele, escutam e são fiéis à única paternidade possível sobre a terra (Mc 3,31-35 par. Mt 12,46-50; Lc 8,19-21). O ventre que cria e o peito que alimenta, bem como as relações biológicas, são substituídas pela escuta da palavra e seu cumprimento, ou seja, pelos laços do espírito (Lc 11,27)

A instauração do reino implica um enfrentamento até a morte com os valores dominantes da sociedade; por isso esse confronto irá situar-se no próprio núcleo da instituição familiar. A divisão da família, que tanto ameaça o arcabouço social, foi anunciada por Jesus e assumida como condição inevitável para o estabelecimento de outras relações mais humanas; pais e filhos se enfrentarão, os irmãos denunciarão irmãos e os entregarão à morte (Mt 10,21 par. Mc 13,12; Lc 21,16). A guerra se instalará entre todos os membros da casa por causa de Jesus (Lc. 12,51-53 par. Mt. 10,34-36). Ele mesmo proclamou-se objeto de amor mais importante que os da família; o pai e a mãe não podem ser mais queridos do que ele (Mt 10,37-38 par. Lc 14,26-27). Por isso os que o seguem abandonam seus pais, e com eles todos os seus familiares (Mt 4,20-22 par. Mc 1,20; Lc 5,11).

Tal é a radicalidade de Jesus. Radicalidade que questiona até o fundo a atitude sacralizadora que a sociedade facilmente adota diante da família. O fato de que esta venha a canalizar, garantir e controlar a sexualidade não é para Jesus razão suficiente e motivo válido para torná-la inquestionável. Existe algo mais importante do que o controle e a canalização da sexualidade dentro de certos limites estabelecidos. Esses limites, que também são um meio para introjetar os valores sociais dominantes, podem também ser utilizados para inculcar valores que se opõem de forma radical aos do Evangelho. Por isso a família deixa de ser para Jesus uma instituição sagrada e absoluta. A partir do momento em que a família representa e perpetua certos modos opressivos de relação, converte-se também numa estrutura contra a qual o reino deve empreender sua luta. Porque nem os valores mais santos que a família possa transmitir justificam, aos olhos do Evangelho, passar por cima dos valores de igualdade radical, de liberdade e de autonomia, de entrega e serviço, o que, com tanta freqüência, é feito pela instituição familiar. Desde o momento em que a família impede ou entorpece a liberdade do sujeito, e, portanto, sua disposição para o reino, Jesus se opõe a ela. Ele não se sentiu paralisado pelo temor, tantas vezes racionalizado, da divisão da família e de suas consequências sobre o controle da sexualidade. Com isso dessacralizou e relativizou o valor dessas estrutura fundamental onde a sexualidade se conforma, se canaliza e para a qual é primordialmente focalizada."

MORANO, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. Edições Loyola. 2003 p. 183-185

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