segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O exemplo de Procusto e o exemplo de Jesus



Por favor me perdoe se para mim o mundo é assim. O que posso dizer além disso? Se nossas visões sobre as coisas são diferentes, se nossos valores são outros, se nossas lutas são tão distantes? O que dizer a não ser tal pedido de perdão?

Em vão será tentar convencer o outro daquilo que ele não acredita. Toda tentativa de convencimento acaba no final parecendo uma triste tentativa de reproduzir o mito de Procusto, aquele que procurava incessantemente uma mulher perfeita, mas sempre que encontrava alguma mulher era necessário levá-la para casa e a fazer deitar em sua cama de pedra. Se a mulher fosse menor que a cama de pedra, ele se sentia compelido a esticar a mulher para que ela ficasse exatamente do tamanho da cama. Se ela fosse maior que cama de pedra, ele simplesmente serrava os pés dela para que ela ficasse do tamanho da cama de pedra. Mais importante que a mulher era a cama para Procusto. (Há várias versões do mito de Procusto. Alguns afirmavam que sua cama era de ferro e ele seria uma espécie de sádico que mantinha duas camas diferentes de forma a cortar ou esticar qualquer um que deitasse na cama, mas eu gosto desta versão de alguém que procura alguém a partir de um padrão.)

Em que medida isso não beira às nossas inúmeras tentativas de convencer o outro de algo que para nós geralmente aparece como algo inegociável?

De alguma forma é como se todos nós estivéssemos serrando, esticando pessoas para que elas sempre se ajustem à nossa cama de pedra, pois só assim elas poderão ser vistas como perfeitas para nós.
Triste Procusto que não enxergava a perfeição senão comparando com um modelo ideal. Triste de nós que várias vezes agimos igual Procusto sempre querendo que o outro seja de acordo com aquilo que imaginamos, de acordo com aquilo que esperávamos delas.
A nossa cama de pedra é muitas vezes mais importante que a própria pessoa que procuramos incessantemente. Nossos padrões às vezes são tão altos, tão rígidos, tão estanques que não admitimos por um segundo sequer que possa haver alguém que seja bom para nós sem fazê-la passar pela nossa cama de pedra.

Em um mundo onde supostamente as camas de pedra estão abolidas, uma vez que qualquer tentativa de padronização, qualquer tentativa de normalização é vista como abusiva, ou como algo que não deve ser feito, é de se espantar que ajamos cada vez mais como Procusto.
Uma grande hipocrisia nos habita nesse sentido, pois ao mesmo tempo que negamos e lutamos contra qualquer tipo de normalização ou padronização do que quer que seja, saímos todas as noites procurando alguém que seja do tamanho da nossa cama de pedra. É como se o laissez-faire valesse apenas enquanto estamos peregrinando, mas assim que chegamos em casa lá está a cama de pedra que se impõe a nós e nos vemos quase que compelidos a seguir o seu comando.
Curiosamente todos nós agimos inúmeras vezes como Procusto e quase sempre achamos que não estamos agindo de forma a imitá-lo.

Por isso que talvez a noção de "convencimento" me pareça estranha. Note-se que aqui não falo de "esclarecimento", ou "explicação", ou dar a entender a um outro sobre determinado assunto. Não se trata disso. A noção de convencimento que comento aqui é aquele convencimento um tanto quanto falacioso que várias vezes fazemos com quem nos cerca. Quando convencer o outro se torna serrá-lo ou esticá-lo para que pense como eu penso, para que aja como eu ajo, para que seja como eu sou. Esse tipo de convencimento é que me lembra Procusto e sua cama de pedra.

Aqui não tem como não lembrar dos inúmeros evangelismos que já participei na vida. Sempre que saíamos para evangelizar nos era proposto que falássemos do texto bíblico no sentido de "convencer" o nosso interlocutor daquilo que estávamos falando. Obviamente que não cabia a nós "convencer", mas sim ao Espírito Santo, afinal, é Ele que nos convence do pecado da justiça e do juízo como nos afirma o texto bíblico. No entanto, algo extremamente curioso é que o Espírito Santo nunca "convencia" ninguém de algo diferente daquilo que nós acreditávamos. É como se o convencimento do "Espírito" de alguma forma corroborasse sempre a nossa fala. É como se de alguma forma Ele quisesse serrar ou esticar pessoas assim como nós queríamos que acontecesse. Lembro que achava isso muito estranho. Em 2009 já falava que talvez isso seria um grande problema ontológico e hoje ainda mantenho a minha posição daquela época.

A meu ver a posição hipermoderna do "cada um por si contando que não me perturbe", não funciona, pois aqui novamente é como se a indiferença se transformasse também em uma grande cama de pedra a qual todos devem se submeter, e isso novamente nos coloca diante de Procusto. Aparentemente o nosso desafio se torna encontrar um justo meio entre o querer que o outro seja como eu, e o ser completamente indiferente em relação ao outro. Ou seja, o desafio em um mundo onde todas as camas de pedra são criticadas se mostra o tentar aceitar o outro na sua diferença, mas sempre lembrando que toda aceitação remete a um se importar com esse outro.

Aceitar algo é uma atividade e não apenas passividade. Quem aceita o Outro, deve aceitar por livre e espontânea vontade, e para isso é preciso que haja uma disposição, uma vontade em receber esse Outro sem fazê-lo deitar em nossa cama de pedra. Se na maioria das vezes não somos capazes de quebrar a nossa cama de pedra, afinal ela foi construída ao longo de toda a nossa história, pelo menos somos capazes de não obrigar ninguém a deitar sobre ela.

Ao invés da cama, uma mesa onde dois diferentes se sentam e dialogam mostrando com isso que se importam um com o outro, mas nenhuma das partes visa subjugar o outro. Por que não dizer que esse seja um excelente caminho para pensarmos os nossos relacionamentos de amizade, os relacionamentos amorosos, o diálogo ecumênico e interreligioso?

Ao invés de seguirmos o exemplo de  Procusto por que não seguimos o exemplo de Jesus que em nenhum momento tentou convencer ninguém de nada, mas ao invés disso sempre se mostrou disposto a aceitar o outro na sua diferença? Por que não aceitar o convite de Jesus que ao invés de tentar se impor por meio de um modelo, retorna aos discípulos para perguntar: "Quem vocês dizem que eu sou?" Do fechamento de Procusto em torno de sua cama de pedra de onde tinha olhos apenas para o seu modelo construído, à abertura da proposta de Jesus que culmina na cruz e se abre para todos que querem se aproximar. Talvez essa abertura seja um excelente meio termo entre o aprisionamento em torno de um padrão e a completa indiferença em relação ao outro. Talvez aqui esteja a possibilidade do justo meio que remetemos mais acima nesse texto.


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