quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Precisamos de um novo Lutero?



Sem dúvida a reforma protestante iniciada por Lutero foi um fato decisivo para a história mundial e principalmente para a igreja cristã ocidental. Quando, em 1517, Lutero pregou as 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg protestando contra as práticas da igreja católica romana desencadeou um movimento que atingiu todo o mundo posteriormente. De suas idéias reformistas vieram após ele Calvino, John Wycliffe, Zwinglio e vários outros que levaram os ideais da reforma protestante mundo afora.

A reforma protestante, antes de tudo, foi uma reforma pedagógica. Ao propor o livre exame da Bíblia, propor que a Bíblia deveria ser lida por todos em sua língua materna e realizar uma tradução da Bíblia voltada para o povo, Lutero iniciava talvez a maior reforma pedagógica já vista na europa. Agora  o povo podia ter acesso ao texto sagrado diretamente, sem precisar do clero para dizer o que Deus tinha a dizer. A Bíblia passa a fazer parte da vida de várias pessoas, várias delas passam a aprender a ler através dela. O texto sagrado é dado ao povo e a este povo é dada também a dignidade de poderem eles próprios entender os mistérios divinos. O povo se aproxima então do Verbo. A palavra se faz texto e habita entre eles.

Os "cinco solas" marcam a nova teologia proposta por Lutero. São eles: Sola fide, Sola scriptura, Solus Christus, Sola Gratia, Soli Deo gloria. Com estes cinco princípios, uma nova teologia nasce e com ela uma nova relação entre o homem e a igreja institucional. Não abordarei aqui a teologia luterana baseada nestes cinco Solas, nem mesmo as doutrinas defendidas por Lutero tais como a predestinação, a negação da transubstanciação, etc uma vez que o texto ficaria muito grande.

Muito tempo se passou e hoje várias pessoas dizem que precisamos de um novo Lutero para reformar novamente a igreja protestante que há algum tempo perdeu muito o seu caráter de protestar contra as coisas. Hoje em dia é capaz da maioria dos protestantes nem mesmo saber o que são os cinco solas de Lutero, e muito menos o que eles implicam e implicaram na relação entre homem e igreja.

Hoje, dia 31 de outubro se comemora a reforma protestante, mas realmente o que se pode comemorar hoje dado o protestantismo atual?  Talvez comemore-se apenas uma data, um fato histórico com toda a sua importancia eclesiástica, e nesse sentido não perde o seu valor enquanto evento histórico, no entanto na prática celebramos a decadencia do protestantismo praticamente todos os dias nas mais diversas celebrações e cultos que temos na TV, rádios, etc. Não é de se espantar o descrédito de vários setores do protestantismo hoje na sociedade brasileira. Em um texto há algum tempo atrás, disse que faço uma diferenciação entre evangélicos e protestantes. Dos protestantes saem os evangélicos  o que vemos a cada dia é que a herança de Lutero se perde a passos largos.

A igreja evangélica brasileira e vários de seus líderes fazem questão de se distanciar cada vez mais dos 5 solas propostos por Lutero e ao mesmo tempo afastar-se do texto bíblico que deu origem à fé cristã. Curiosamente, o protesto de Lutero parece ter dado início a um grande círculo que agora vê uma espécie de retorno ao seu início. É bastante óbvia a associação entre as campanhas, os óleos ungidos, as correntes, e toda sorte de "magia cristã" (todas elas com algum preço, é óbvio) com as indulgências da época de Lutero. Só que agora, ao invés de prometerem um lugar no céu, se promete um bom lugar na terra, uma mansão, uma boa empresa, um lucro exorbitante. Nada mais próximo da sociedade capitalista de hoje. Se na época de Lutero o mundo ainda era "encantado" para usarmos a expressão de Weber, o desencanto da modernidade gera novas promessas, e todas elas vinculadas a dinâmica do capital, afinal, hoje em dia não faria muito sentido prometer que se você fosse durante 7 sextas-feiras teria um lugar no céu. Faz mais sentido afirmar que você terá uma grande empresa, ou uma casa nova, ou qualquer coisa mais vinculada a aquisição de bens que as traças e a ferrugem consomem.

Neste caso, será que um novo Lutero como vários insistem resolveria o problema, ou apenas daria início a mais um círculo que dentro de alguns anos veria de novo o seu colapso diante de um eterno retorno do mesmo? As 95 teses que trazem uma tentativa de uma reformulação teológica da igreja católica levou a um excesso de teorização que muitas delas não fazem mais sentido hoje, ao mesmo tempo o livre exame da Bíblia acabou se tornando desculpa para as mais diferentes interpretações e teologias que vemos hoje em dia. Uma pior que a outra. Talvez o exemplo de Lutero nos mostre que a igreja deva ter como baliza não apenas uma teorização, mas ao mesmo tempo uma vivência. Lutero foi um exemplo de fé que levou às últimas consequências sua proposta.

Recentemente Paul Valadier nos disse que para a igreja (e nesse caso se referia à igreja católica romana) conseguir lidar com o pluralismo em seu seio, seria preciso relembrar o exemplo de Inácio de Loyola. Do seu ponto de vista, Valadier nos diz que a espiritualidade ianciana " convida o homem a abrir-se para o desejo de Deus, para si e para o mundo, mobilizando sua afetividade, suas capacidades intelectuais e sua vontade para descobrir o que deve ser feito aqui e agora. Ela defronta cada indivíduo com sua vocação própria e única, mergulhando-o, portanto, na atualidade histórica em que a graça de Deus o chama a ser, em vez de cair no vazio (naquele do pecado), a viver, ou de perecer, conforme a antiga sabedoria bíblica.(...) Para tanto, precisamos de outro Inácio, se quisermos evitar o surgimento de outro Lutero." ( A entrevista completa pode ser lida aqui).

Dessa forma, concordando com Valadier, vejo que a necessidade maior hoje  não seria de um novo Lutero, mas um retorno a uma vida cristã autêntica que teria no Cristo o seu exemplo maior de conduta. Uma cristandade que tem como foco o levar a vida abundante onde ela não há, e assim propor um novo paradigma ao mundo. Acredito que só assim, a religião cristã poderá de novo ter algo a dizer ao mundo em tempos tão caóticos que vivemos. Lutero então pode ser visto como um divisor de águas na história da igreja, e sua fé com certeza pode ser considerada um exemplo para nós, assim como todo o seu empenho de fazer a igreja retornar às suas bases no intuito de reformar o catolicismo, no entanto no mundo atual não serão novas teses que farão com que a igreja refaça seu caminho em direção ao próximo, mas sim um retorno a uma espiritualidade que tem no próprio Deus o seu foco, e aqui, concordando com Levinas, penso que o próprio Deus só pode ser encontrado na figura do próximo. Daí talvez o conselho de Valadier no sentido de precisarmos de um outro Inácio e não um novo Lutero.







terça-feira, 23 de outubro de 2012

Pensando sobre o céu estrelado



 

Kant já nos dizia que duas coisas o maravilhavam tremendamente. A lei moral dentro dele e o céu estrelado sobre ele. Hoje ao sair de casa tive o mesmo sentimento de maravilhar-se. Não com a lei moral, mas com o céu estrelado sobre mim. Na época de Kant não se sabia o que se sabe hoje sobre as estrelas, e acredito que se soubesse, Kant se maravilharia mais ainda com o céu estrelado sobre ele.

Nosso conhecimento hoje sobre as estrelas, sobre os planetas, enfim, sobre a cosmologia é bem vasto, e mesmo sendo tão vasto não conhecemos nem um décimo de tudo o que está acima de nós. Para termos noção disso que falo basta olharmos o Google Earth na opção Space e veremos que temos alguns pequenos traços demarcados que são onde se encontram as galáxias conhecidas, alguns planetas, etc. Pequenos traços de uma mapa extremamente incompleto que nos faz ver ao mesmo tempo a grandeza do espaço e nossa pequenez diante dele.

Dado ao conhecimento que temos hoje sobre as estrelas, sabemos que sempre quando olhamos para uma estrela no céu estamos olhando para o nosso passado, afinal, a estrela que se mostra pode já ter se transformado em uma grande supernova e não mais existir, mas apenas agora sua luz chega até nós. Anos-luz de distância nos separam da estrela que se mostra para nós agora. Olhamos o que de fato pode nem mesmo existir mais. Achamos lindo o inexistente, aquele algo que pode ou não pode estar lá ainda. Olhar para o céu estrelado sobre nós nos faz colocar em dúvida toda a nossa certeza na empiricidade. Neste momento concordamos com Descartes que nos falava que os sentidos nos enganam. O céu estrelado sobre mim me engana, e neste enganar me maravilha tremendamente. Com Kant diríamos que entre o númeno e o fenômeno está o maravilhar diante deste desconhecido, afinal, o que a estrela de fato é agora, no momento que a contemplo no céu, isso eu nunca poderei saber, mas até mesmo o fenômeno que se mostra a mim (que segundo Kant seria construído a partir da razão que em mim habita) remete a este engano fundamental, esta distancia enorme entre fato e aparência que não cessa de me maravilhar.

Uma teoria cosmológica ainda bem aceita no meio científico é a teoria do Big Bang que diz que todo o nosso universo surgiu de uma explosão inicial onde tudo estava comprimido em um ponto do espaço. Desta explosão viriam todas as coisas existentes no universo. Seríamos, portanto, poeira estrelar, fruto de uma explosão sem sentido que poderia não ter acontecido, mas que de alguma forma aconteceu e por isso estaríamos aqui. Seríamos determinados por este passado longínquo, do qual não temos controle, mas apenas sofremos seus efeitos em nossa constituição. E como não lembrar de Freud e sua teoria psicanalítica que nos remete a uma mesma determinação a partir do nosso passado longínquo do qual não temos domínio e apenas sofremos os efeitos dele tentando desesperadamente lidar com isso durante toda a nossa vida?

O céu estrelado sobre mim me fez pensar todas estas coisas enquanto caminhava para o trabalho, e isso me fez maravilhar assim como o fez ao filósofo de Königsberg.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Psicanálise e Religião. Pequenos pensamentos esparsos






No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez. João 1.1-3

Qualquer mundo que queiramos criar pressuporá o uso das palavras que serão significativas em nossa arquitetura. Estas mesmas palavras serão usadas por nós como tijolos da construção deste mundo no qual fiaremos todas as nossas certezas e incertezas, onde buscaremos abrigos quando os dias forem maus, onde gostaremos de estar quando a paz nos faltar. Tudo isto construído por palavras.

No princípio era o verbo.

Nas profundezas de nós mesmos, lá no princípio, tudo é sem forma e vazio,  como se fosse um extremo caos onde a palavra ainda não tem acesso, onde não há tempo, mas que de alguma forma há o que realmente somos. Pulsões e mais pulsões querendo de alguma forma vir a tona, mas sem exito porque o que há é apenas caos. Apenas quando o verbo é dito tudo se transforma. O outro traz o verbo, ele se instaura em nós, ilumina, ordena, canaliza este turbilhão de pulsões. Com o verbo dito, algo se transformou e só então começamos a nos construir. Este verbo criador passa então a fazer parte de nós. Tudo será feito a partir dele, e sem ele nada do que for feito se fará.

Toda nossa busca posterior será na tentativa de decifrar este verbo presente em nós. Através das palavras passamos a revelar para nós o que antes não sabíamos, desvelamos as sendas obscuras que habitam em nós e que na maioria das vezes nem sabemos que estão lá. Do inconsciente ao consciente na tentativa de reviver o verbo que passou a fazer carne em nós. Esta tentativa quando bem executada nos traz ao conhecimento de nós mesmos e a partir daí podemos caminhar em nova direção.

Tudo criado e construído pela palavra. o verbo se instaura  e depois passamos a vida buscando palavras para tentar dizer o verbo encarnado em nós, várias vezes incompreendido, várias vezes obscurecido e não raras vezes escondido por nós mesmos.

Não seria esta a tarefa principal da psicanálise em seu trabalho de escuta entre analista e analisando? Este trazer a tona os segredos obscuros do homem de forma que ele veja quem ou o que ele realmente é e a partir daí consiga seguir em frente lidando com o sofrimento e o desamparo que o constitui? Nao seria a psicanálise a procura do verbo entendido como algo a ser buscado através de um método científico? Uma tentativa de cura pela palavra?

 "Diga-me uma só palavra e eu ficarei curado", talvez seja este o sonho de todo analisando com seu analista que geralmente não tem esta palavra de forma a precisar que o analisando fale, diga o que lhe vier a mente para então o analista tentar montar o quebra-cabeça provocado pela livre associação.
É óbvia aqui a presença da fé. Fé do analisando para com o analista, sem fé é impossível haver análise, pois o analisando precisa acreditar que o analista o entende, o acolhe, para então falar. Só a partir da fé começa a análise, começa-se a busca psicanalítica pelo verbo encarnado.

Dito dessa forma, fica claro que tanto a psicanálise quanto a religião buscam cada um a seu modo curar o homem de seu desamparo e buscar fornecer a ele um auxílio para lidar com o sofrimento. A religião para tal cura propõe um sentido último, um transcendente para o homem, a psicanálise propõe um mergulhar no inconsciente para que a partir do próprio conhecimento o homem lide melhor com seu desamparo estrutural, sem transcendente, sem um sentido último, sem promessas. Até que ponto a religião e a psicanálise podem se ajudar para livrar o homem do seu desamparo é algo a ser estudado com muito afinco e acredito que a dicotomia proposta por vários psicanalistas e vários religiosos não seja sadia. Não se deve pensar em uma dinâmica de "ou psicanálise, ou religião", mas vejo que o que deve ser buscado é uma proposta mais integradora e quanto a isso vários esforços tem sido feitos e é motivo de felicidade poder fazer parte deste diálogo tão profícuo.

Fé e crédito - Giorgio Agamben







Para entender o que significa a palavra "futuro", é preciso, antes, entender o que significa uma outra palavra, que não estamos mais acostumados a usar, senão na esfera religiosa: a palavra "fé". Sem fé ou confiança, não é possível futuro. Só há futuro se pudermos esperar ou crer em alguma coisa.

Sim, mas o que é fé? David Flüsser, um grande estudioso da ciência das religiões – também existe uma disciplina com esse estranho nome – estava justamente trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para "fé". Um dia, ele se encontrava por acaso em uma praça de Atenas e, em um certo momento, levantando os olhos, viu escrito em caracteres capitais, à sua frente: Trapeza tes pisteos. Estupefato com a coincidência, olhou melhor e, depois de alguns segundos, se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um banco: trapeza tes pisteos significa, em grego, "banco de crédito".

Eis qual era o sentido da palavra pistis, que ele estava tentando entender há meses: pistis, "fé", é simplesmente o crédito do qual gozamos junto de Deus e do qual a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que acreditamos nela.

Por isso, Paulo pode dizer em uma famosa definição que "a fé é substância de coisas esperadas" [ou, segundo a versão da Bíblia Pastoral, "um modo de já possuir aquilo que se espera"]: ela é o que dá realidade àquilo que não existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Algo como um futuro existe na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às nossas esperanças.

Mas a nossa época, como se sabe, é de escassa fé ou, como dizia Nicola Chiaromonte, de má-fé, isto é, de uma fé mantida à força e sem convicção. Portanto, uma época sem futuro e sem esperanças – ou de futuros vazios e de falsas esperanças. Mas, nesta época muito velha para crer realmente em alguma coisa e esperta demais para estar verdadeiramente desesperada, o que será do nosso crédito, o que será do nosso futuro?

Porque, olhando bem, ainda há uma esfera que gira totalmente ao redor do eixo do crédito, uma esfera em que acabou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Essa esfera é o dinheiro, e o banco – a trapeza tes pisteos – é o seu templo. O dinheiro nada mais é do que um crédito, e sobre muitas notas de crédito (sobre a libra esterlina, sobre o dólar, mesmo que não – sabe-se lá por que; talvez deveríamos começar a suspeitar disso – sobre o euro) ainda está escrito que o banco central promete garantir esse crédito de algum modo.

A chamada "crise" que estamos atravessando – mas aquilo que se chama de "crise", isso já está claro, nada mais é do que o modo normal em que funciona o capitalismo do nosso tempo – começou com uma série insensata de operações sobre o crédito, sobre créditos que eram descontados e revendidos dezenas de vezes antes que pudessem ser realizados. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro – e os bancos que são o seu órgão principal – funciona jogando sobre o crédito – ou seja, sobre a fé – dos homens.

Mas isso também significa que a hipótese de Walter Benjamin, segundo a qual o capitalismo é, na verdade, uma religião e a mais feroz e implacável que jamais existiu, porque não conhece redenção nem trégua, deve ser tomado ao pé da letra. O Banco – com os seus funcionários pardos e especialistas – tomou o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda tem em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável e sem escrúpulos, tentando lucrar dinheiro com a confiança e as esperanças dos seres humanos, estabelecendo o crédito de que cada um pode gozar e o preço que deve pagar por isso (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram à sua soberania).

Desse modo, governando o crédito, ele governa não só o mundo, mas também o futuro dos seres humanos, um futuro que a crise torna cada vez mais curto e a prazo. E se hoje a política não parece mais possível, isso se deve ao fato de que o poder financeiro sequestrou de fato toda a fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as expectativas.

Enquanto essa situação durar, enquanto a nossa sociedade que se acredita laica permanecer subserviente à mais obscura e irracional das religiões, será bom que cada um retome o seu crédito e o seu futuro das mãos desses tétricos pseudosacerdotes, banqueiros, professores e funcionários das várias agências de rating. E talvez a primeira coisa a fazer é parar de olhar apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao contrário, voltar o olhar para o passado.

Apenas compreendendo o que aconteceu e, sobretudo, tentando entender como pôde acontecer, será possível, talvez, reencontrar a própria liberdade. A arqueologia – não a futurologia – é a única via de acesso ao presente.

Para entender o que significa a palavra "futuro", é preciso, antes, entender o que significa uma outra palavra, que não estamos mais acostumados a usar, senão na esfera religiosa: a palavra "fé". Sem fé ou confiança, não é possível futuro. Só há futuro se pudermos esperar ou crer em alguma coisa.

Sim, mas o que é fé? David Flüsser, um grande estudioso da ciência das religiões – também existe uma disciplina com esse estranho nome – estava justamente trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para "fé". Um dia, ele se encontrava por acaso em uma praça de Atenas e, em um certo momento, levantando os olhos, viu escrito em caracteres capitais, à sua frente: Trapeza tes pisteos. Estupefato com a coincidência, olhou melhor e, depois de alguns segundos, se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um banco: trapeza tes pisteos significa, em grego, "banco de crédito".

Eis qual era o sentido da palavra pistis, que ele estava tentando entender há meses: pistis, "fé", é simplesmente o crédito do qual gozamos junto de Deus e do qual a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que acreditamos nela.

Por isso, Paulo pode dizer em uma famosa definição que "a fé é substância de coisas esperadas" [ou, segundo a versão da Bíblia Pastoral, "um modo de já possuir aquilo que se espera"]: ela é o que dá realidade àquilo que não existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Algo como um futuro existe na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às nossas esperanças.

Mas a nossa época, como se sabe, é de escassa fé ou, como dizia Nicola Chiaromonte, de má-fé, isto é, de uma fé mantida à força e sem convicção. Portanto, uma época sem futuro e sem esperanças – ou de futuros vazios e de falsas esperanças. Mas, nesta época muito velha para crer realmente em alguma coisa e esperta demais para estar verdadeiramente desesperada, o que será do nosso crédito, o que será do nosso futuro?

Porque, olhando bem, ainda há uma esfera que gira totalmente ao redor do eixo do crédito, uma esfera em que acabou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Essa esfera é o dinheiro, e o banco – a trapeza tes pisteos – é o seu templo. O dinheiro nada mais é do que um crédito, e sobre muitas notas de crédito (sobre a libra esterlina, sobre o dólar, mesmo que não – sabe-se lá por que; talvez deveríamos começar a suspeitar disso – sobre o euro) ainda está escrito que o banco central promete garantir esse crédito de algum modo.

A chamada "crise" que estamos atravessando – mas aquilo que se chama de "crise", isso já está claro, nada mais é do que o modo normal em que funciona o capitalismo do nosso tempo – começou com uma série insensata de operações sobre o crédito, sobre créditos que eram descontados e revendidos dezenas de vezes antes que pudessem ser realizados. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro – e os bancos que são o seu órgão principal – funciona jogando sobre o crédito – ou seja, sobre a fé – dos homens.

Mas isso também significa que a hipótese de Walter Benjamin, segundo a qual o capitalismo é, na verdade, uma religião e a mais feroz e implacável que jamais existiu, porque não conhece redenção nem trégua, deve ser tomado ao pé da letra. O Banco – com os seus funcionários pardos e especialistas – tomou o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda tem em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável e sem escrúpulos, tentando lucrar dinheiro com a confiança e as esperanças dos seres humanos, estabelecendo o crédito de que cada um pode gozar e o preço que deve pagar por isso (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram à sua soberania).

Desse modo, governando o crédito, ele governa não só o mundo, mas também o futuro dos seres humanos, um futuro que a crise torna cada vez mais curto e a prazo. E se hoje a política não parece mais possível, isso se deve ao fato de que o poder financeiro sequestrou de fato toda a fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as expectativas.

Enquanto essa situação durar, enquanto a nossa sociedade que se acredita laica permanecer subserviente à mais obscura e irracional das religiões, será bom que cada um retome o seu crédito e o seu futuro das mãos desses tétricos pseudosacerdotes, banqueiros, professores e funcionários das várias agências de rating. E talvez a primeira coisa a fazer é parar de olhar apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao contrário, voltar o olhar para o passado.

Apenas compreendendo o que aconteceu e, sobretudo, tentando entender como pôde acontecer, será possível, talvez, reencontrar a própria liberdade. A arqueologia – não a futurologia – é a única via de acesso ao presente.

Retirado do site da IHU http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506810-quando-a-religiao-do-dinheiro-devora-o-futuro-artigo-de-giorgio-agamben